terça-feira, 30 de agosto de 2011

Amado Casebre

Para Michele, grande amiga, uma das poucas que ainda têm saco para ouvir minhas estórias.



Em meus tempos de moleque, nunca moramos em casa de luxo. Para ser sincero, sequer tivemos um teto que pudéssemos chamar de nosso. Estávamos sempre em constante peregrinação, ora morando de favor aqui, ora de inquilinato acolá, mas incertos quanto ao nosso paradeiro no dia seguinte. Não obstante esse pequeno detalhe, éramos felizes (ao menos nós, as crianças, embora nunca tenha visto mamãe reclamar das privações a que nos submetíamos). Lembro que sempre estávamos rindo, mesmo de barrigas vazias. As brincadeiras serviam como para enganar nossos estômagos. E essas eram muitas. Não faltavam árvores em que nos pudéssemos trepar, goiabas que pudessem escapar de nossas mão ávidas, estivessem de vez ou madurinhas, postadas em galhos baixos ou no mais alto dos galhos.

Lembro também que, de todas as casas decentes e malocas onde moramos, a de quem mais tive apreço fora um pequeno barraco que nos havia sido concedido por um amigo de meu padrasto, O terreno era amplo, mas eu via muito mais que isso; para mim, aquele era meu reino encantado particular, onde eu podia fazer minhas brincadeiras e nenhum vizinho ranheta atrapalhava. Gostava de construir casinhas de madeira, e ali tive toda liberdade para expandir minha criatividade. Minha irmã mais nova consumia-se em inveja das barraquinhas que eu construía, mais ainda porque nunca lhe permitia participar de minhas brincadeiras. Ela então chorava, esperneava, ameaçava contar tudo para mamãe, que eu não a estava deixando entrar na minha maloquinha - porém eu sempre me mantive irredutível, não querendo meninas em minhas brincadeiras. Seu último recurso era choramingar aos pés de minha mãe, que não resistia a seus apelos e acabava lhe prometendo construir uma casinha tão maior e sofisticada quanto a minha. Cumprir com tal promessas, no entanto, era muito raro, de modo que eu não me preocupava com a ameaça de concorrência.

Um dia, porém - e eu não sei o que deu nela para tomar aquela resolução - mamãe decidiu que iria dar início à construção da prometida casinha. Logo cedo começou a recolher madeiras fora de uso que ficavam espalhadas pelo quintal. De pouco em pouco, a casinha foi tomando forma e - ai meu Deus! - como ia ser grande, espaçosa, um luxo de dar inveja. Fiquei com ciumes. Mamãe nunca havia se interessado em construir uma casinha para mim e , de repente, ali estava, construindo um palacete para minha irmã. Comparado àquilo, a cabana de que tanto eu me orgulhava não passava de um casebre feio e mal construído.

Certa feita, eu quis participar de suas brincadeiras, já não tinha tantos ciumes de seu brinquedo novo e até enxergava o lado positivo de ela também possuir uma casinha: agora éramos vizinhos, e como bons vizinhos, tínhamos que viver em harmonia, como bons camaradas. Porém, quando me ofereci para entrar, ela bateu a porta e gritou lá de dentro:

- Aqui, só brincam meninas!

Sinto falta do tempo em que tão poucas coisas me atormentavam. Para me fazer feliz, bastavam meus brinquedos, algumas goiabeiras e um fundo de quintal onde eu pudesse correr livre, de pés descalços. Hoje existem as dívidas, os compromissos inadiáveis... O inferno de amar, meu Deus. O inferno de amar.

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Outra vez

* Para Carol

Outra vez senti 
aquele vazio triste 
que é sentir tua ausência.

Outra vez me peguei
distraído com tua lembrança
que de minha memória não se ausenta.

outra vez pedi aos deuses
que me dessem uma chance
de ouvir tua voz como antes.

Outra vez
feito menino bobo chorei
querendo, mesmo que por um instante,
ouví-la, sussurranre: "como amo você!" 

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Ditadura do amor

Queria que tudo fosse sempre assim,
nunca houvesse o fim,
nem o partir
e o sentir no peito
o amargor de um adeus.
Queria, outrossim,
que todos os dias fossem feriados,
que os rostos cansados irradiassem tanta luz
quanto num domingo;
e que os patrões
dessem folga a seus empregados
por tempo indeterminado.
Queria caminhar pelas ruas
e encontrar todos de braços dados,
como bobos ou abestados,
a estamparem nas caras
sorrisos arreganhados.
Que o amor fosse a única sinfonia;
nas televisões e nos rádios, a única notícia;
que fosse a única arma, o único grito
nos campos de batalhas;
que fosse a roupa que vestimos,
o sapato que calçamos,
o alimento que digerimos
o sonho que sonhamos,
a palavra que proferimos,
a ditadura nos governando
por caminhos plácidos,
mares tranquilos.
Que, nem a distância,
nem as diferenças
ou as divergências,
fossem capazes de separar
corações que verdadeiramente se amam.

Musa sem cara

O grande amor da minha vida
não tinha nome, não tinha face,
não tinha cheiro nem pele que afagasse;
Não tinha endereço, em todos os lugares morava:
nos botecos, nas esquinas;
numa rosa murcha feita marcador de página,
lá estava ela, musa sem cara...
Mas tão viva, meu Deus!
Tão viva.

Ausência

Tua ausência 
é agonia que sufoca
e cresce a cada dia; esmaga, oprime, corrói
o pouco que ainda me resta de sensatez.
Não vejo a hora em que tudo isso acabe.
Espero ansiosamente o momento em que estaremos
juntos definitivamente,
e nada, nem distância ou ressentimentos
poderá nos afastar;
onde a vida, no seu mais sublime aspecto,
não comporta falhas nem rachaduras,
onde o amor é indefectível,
imortal.

Imortal

Imortal é o amor
que nasceu com o raiar do dia
e, como árvore, foi enterrando suas raízes
em corações apaixonados.
Imortal é a paz que nos envolve
quando perdoamos ofenças e mágoas,
é a sensação de plenitude que nos afaga
quando não temos dores ou chagas a sofrer,
culpas ou pecados a expurgar.
Imortal é a alegria que nos domina
ao termos convicção de que nada é tão poderoso
quanto um abraço amigo, uma palavra de consolo
em momentos que nos sentimos abatidos.
Imortal é saber
que sempre teremos ao nosso lado
alguém que nos ame,
mesmo em noites sombrias,
jamais estaremos sozinhos.
O resto não é mais que efemeridade.

sábado, 6 de agosto de 2011

A tempestade

Era tarde da noite e chovia torrencialmente quando ela me ligou. A princípio, achei que fosse algo urgente, mas era da chuva que ela tinha medo. As gotas gotejando em seu teto feito metralhadora ameaçavam levá-lo abaixo. Pedi que se tranquilizasse. Não adiantou. Ela queria porque queria que eu fosse até  sua casa dar um jeito naquilo.
Eu não estava disposto a levantar da cama e encarar a noite gélida que me aguardava lá fora. Sem meias palavras, disse-lhe que não podia. Ela entrou de vez em pânico. Então iria deixá-la morrer sob os escombros do teto de seu quarto?
 - Pelo amor de Deus, mulher! Nada vai acontecer.
Mas eu não estava lá para ver. As gotas eram como soldados marchando compassadamente: poc, poc poc. O teto gemia como se dissesse "não posso mais!". Uma tragédia iria acontecer, se eu não aparecesse logo, iria! No dia seguinte a TV e os jornais impressos estariam repletos com a trágica notícia de sua morte.
Bem antes disso, porém, a tempestade havia cessado, tão súbita quanto surgira. Ficamos ao telefone - eu aqui, aliviado por não precisar abandonar minha cama; ela, do outro lado, aliviada de não estar morta.