quinta-feira, 27 de outubro de 2011

O sorridente

Havia na nossa rua um pobre coitado que vivia a perambular pelas calçadas, sempre com um sorriso estampado no rosto. Alguns diziam que era louco - assim mesmo, no duro, sem ponderar nem refletir sobre o peso da própria palavra. Eu, no entanto, diria que ele era um privilegiado, porque a tudo recebia com aquele sorriso que não lhe abandonava, estivesse de barriga cheia ou saciado com alguma porcaria que houvesse recolhido do lixo.

Devo admitir que sentia enorme admiração por aquele rapaz. Enquanto centenas de outros anônimos lamentavam pelo emprego perdido ou pelos relacionamentos liquidados, ele sorria ante a sua miséria - ele, que tinha pleno direito de chorar, sorria como se tudo fosse plenamente perfeito.

Muitas vezes me peguei me perguntando quais seriam suas origens. Alguma vez tivera um lar para onde retornar no fim de um exaustivo dia de trabalho? Alguma vez tivera um emprego? A essa altura sua esposa talvez estivesse preocupada com o paradeiro do marido desaparecido. Já não sabia mais o que responder ao filho caçula quando este começava a fazer perguntas sobre o pai.

Aquele homem sorridente era uma incógnita - não só a mim, mas como a muitos outros também. Porém talvez  fosse eu o único a demonstrar algum interesse sadio por ele. Os demais transeuntes, quando o viam pedindo esmolas, sentado na pedra quente da calçada sob o sol do meio-dia, apenas lançavam olhares intrigados para o seu rosto sorridente e jogavam uma moedinha na lata de leite que ele erguia para o alto. Havia, é bem verdade, aqueles que passavam sem ao menos notá-lo, ou aqueles que passavam de largo, desconfidos de seu sorriso suspeito ou afetados pelo mau cheiro de suas roupas  encardidas, mas esses eram minoria. Ainda assim, era impossível simplesmente ignorá-lo e evitá-lo, pois aos que agiam dessa forma ele persseguia por um bom caminho, sacudindo sua lata com as moedinhas, até que lhe dessem a requerida esmola.

Certo dia ele aparecera na companhia de um vira-lata. Os transeuntes assustavam-se agora duas vezes: por sua aparência degradada e pelo animal que ladrava o tempo todo a troco de nada. O homem sorridente e o cachorro logo se tornaram grandes parceiros, inseparáveis. Aonde um ia, o outro acompanhava, abanando o rabo, a língua pendurada num canto da boca. Com o dinheiro das esmolas, o sorridente comprva um único sanduíche de mortadela e o compartilhava com o cachorro. Imagino que aquela meia banda de pão sequer bastava para aplacar a fome de ambos. No entanto, mesmo com os estômagos roncando, o homem sorria e o cão jamais o abandonava.

Dias depois, uma tragédia se daria, ficando estampada nas manchetes dos jornais mais importantes da cidade. Foi uma dessas manhãs chuvosas.. As ruas e as calçadas haviam alagdo. O homem sorridente procurava por seu cachorro, que tinha ido atrás de um abrigo quando tudo começara. Não o chamava pelo nome, que nome não tinha, e mesmo se tivesse, não ser ouvido no meio daquela tempestade. Então ele soltava urros animalescos para o alto, na esperança de que o cachorro o atendesse.

Horas depois, encontrou-o entalado numa boca de bueiro, o corpo encharcado já sem nenhuma vida. Tomou-o nos braços e o carregou para longe, desfilando pelas ruas enlamedas onde outrora mendigava.  Das janelas de suass casas todos puderam então presenciar a mais curiosa das cenas: um homem vestido em farrapos sorria, porém seus olhos transbordavam lágrimas.

Coisas irrevogáveis da vida

Há coisas em nossa vida que são irrevogáveis, e mesmo assim não hesitamos em arriscar um passo adiante - seja pelo prazer que isso nos dá, seja pela total falta de controle que temos sobre nossos impulsos primitivos. Saltar de para-quedas, por exemplo; é algo irrevogável, definitivo. Depois que você está no alto, com os braços abertos em meio ao azul vazio do céu, não há como voltar atrás. Saltar de para-quedas não aceita arependimentos nem devoluções.

O mesmo podemos dizer quando o caso é atravessar uma rua. Você nunca poderá atravesar a mesma rua num mesmo sentido duas vezes seguidas. Cada vez será como a primeira.
Para ilustrar melhor, digamos que o par de tracejados abaixo represente as duas extremidades de uma avenida e que o X numa de suas margens seja você:


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X

A não ser que você, assim como as amebas, tivesse a capacidade de se dividir em dois, a trarefa de atravessar essa rua num mesmo sentido duas vezes seguidas seria algo impossível.
Podemos também considerar como parte irrevogável das coisas da vida o ato de embarcar num ônibus por engano. Mesmo que você tome o ônibus certo depois, isso não muda o fato de que seu percurso habitual para o trabalho, casa ou escola foi alterado; que você, mesmo sem querer, acabou fazendo um tour por algum lugar desconhecido da cidade. Em algumas ocasiões, isso até que não pode ser tão ruim, como quando uma amiga me relatou de sua aventura no interior de um ômibus que tomara achando que fosse o que costumava pegar. Ela só se deu conta de que havia cometido um engano quando o dia começou a escurecer e o ônibus não chegava ao destino desejado.
Para encerrar minha crônica, vou me arriscar afirmando que uma das coisas irrevogáveis em nossa vida é o amor. Quando você se entrega a esse sentimento, perde-se em seus muitos caminhos. Não há como desfazer os seus laços. Ele será para sempre aquele fraquejo nas pernas, um palpitar mais intenso, um pensamento meio bobo. Como diria nosso colega Luís: "é um nunca contentar-se de contente; um cuidar que ganha sem se perder." 

A máquina do amor

Ainda agorinha eu estava, como sempre costumo fazer, "zapeando" por algumas páginas da Internet, quando encontrei uma que me chamou a atenção, justamente por apresentar a seguinte manchete:


"MAQUINA DO AMOR: novidade tecnológica ainda em fase te teste."

A matéria presseguia discorrendo a respeito das mil e uma maravilhas que aquela máquina recém-criada pelos japoneses era capaz de fazer. Basava apontá-la para algum campo de batalha onde estivesse acontecendo uma guerra entre países antes aliados, e eles novamente voltavam a ser amigos; apontasse para as regiões mais miseráveis do continente africano, que tudo - fome, doença, miséria - desapareceria como passe de mágica. O grande dilema da máquina do amor era a concorrência de mercado. Ainda existiam pessoas que tinham preferência por outras máquinas: a máquina da dor, a máquina do medo, a máquina do egoísmo - e, a mais popular de todas: a máquina da desigualdade. Segundo estimativas, ainda levaria muito tempo para que o homem se familiarizasse com a máquina do amor. Muitas instituições públicas e ongs de todas as partes do planeta até que se mostravam empenhados em ministrar cursos que capacitassem o homem a lidar com a máquina do amor, seus circuitos e mecanismos internos. Porém, só aos trancos e barrancos era que ele vinha assimilando aquela novidade.

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Primeira convicção

Quando pequeno, eu era uma criatura muito magrinha, as roupas em mim sempre caindo como um saco de batatas. Quem me via na rua sentia pena, imaginando as inúmeras privações a que me submetia. Por isso, não raro eu ganhava das pessoas presentes, tais como: sapatos usados, meias que ninguém mais queria, roupas rasgadas mas que podiam ser reparadas com um ponto de costura aqui, outro acolá. Vovó era especialista em reparar  as coisas velhas que eu levava para csa. Mamãe, no entanto, não gostava da ideia que faziam de seu menino: eu não era nenhum perdido, tinha casa onde morar, cama onde dormir e mãe que me amava. Ninguém nunca duvidou disso, afinal, todos me conheciam no bairro, mas mamãe era sempre do contra.

Apesar de magrinho, eu tinha uma cabeçorra enorme. As pessoas sempre se admiravm do modo como eu conseguia equilibrá-la sobre meu pecoço fininho. Alguns até aguardavam o momento em que eu não a suportaria mais e deixariaela tombar de lado. Faziam apostas.

Na rua, a primeira coisa que se vistava era meu cabeção despontando no horizonte como uma lua cheia. Então todo mundo ria. Devo admitir que, na época, aquilo me deixava ofendido. Hoje, no entanto, reconheço que não havia como minha aproximação provocar outra reação nas pessoas.


Além das roupas e dos sapatos que nunca me cabiam, também não havia chapéu que cobrisse minha cabeça. Aí eu realmente ficava pê da vida, porque gostava mesmo de chapéus. Queria me  parecer com  o Airton, mas meu cabeção não permitia.

Certo dia perguntei para mamãe por que tinha nascido daquele jeito. Não compreendia a razão de as demais crianças serem normais, enquanto que eu tinha aquela bola de basquete em cima do pescoço. Ela nunca me respondia, não do modo como eu queria. Em invés disso, dizia que "se as coisas estavam tortas, então era assim mesmo que Deus queria que ficassem". Foi a partir desse momento que surgiu minha primeira convicção: "Deus era um cara muito mau".

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Boi, boi, boi...

Na minha infância, muitas coisas me metiam medo. O escuro, por exemplo. Só de pensar nele, já me sentia todo arrepiado.

Quanto a isso, nada de anormal, toda criança tem medo de escuro, assim como de minhocas, baratas e aranhas (até os adultos têm medo dessas coisas!). o que, definitivamente, fugia do normal era o pavor que eu tinha de bois. Toda vez que encontrava algum solto na rua, corria para me esconder debaixo da cama, onde ficava o resto do dia ou até que alguém me encontrasse.

À noite, sonhava com bois. Sonhava que estava cercado por dezenas deles: pardos, grandalhões, desajeitados. Me encaravam com uma expressão estúpida na cara, despreocupados com a vida. Nada faziam, além de mastigarem capim, mas eu sempre acordava aos berros. Mamãe acudia às pressas, tentando me tranquilizar, mas tudo que conseguia era agravar ainda mais a situação. em seu colo, ouvia sua voz doce cantarolando a canção de ninar que tanto me enchia de pavor:


Boi, boi, boi,
Boi da cara preta....

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Mundo mentido

Mundo bom
é mundo mentido.
Não precisa ser verdade
aquele menino mal vestido,
analfabeto e esmoler
pedindo um trocado ao "tio"
que não lhe vê porque o vidro
do seu Mercedes importado
é à prova de comunismo.

Pela janela

Olho pela janela
e quando penso que você
já não está tão perto assim
a ponto de um grito meu poder alcançá-la
sinto que me falta uma parte,
um dedo, um olho.
Você era essencial para mim.

Consciência de mundo

Desde menino
já me tinham dito
que o mundo era assim:
cheio de coisas estranhas pra mim.
O homem teme a morte
porque não aprendeu a valorizar o suficiente a vida.
EU: massa de carne ambulante
sobre a esfera terrestre.

Objetivo

Não quero
 com minha poesia
tocar o céu, desbravar mares.
 Quero apenas lhe despertar um sorriso,
 que isso já é o bastante.

Leve

Escrevo bobagens
 altas horas da noite
 enquanto o sono não vem.
 Mas é escrevendo coisa boba
 que leve me sinto
 tão leve que até sinto
 que posso alçar voo.

Alerta

Ia dizer
para você tomar cuidado:
o fogo queima, o espinho espeta,
o escuro faz medo
porque esconde coisas secretas.
Mas acho que você já deve saber de tudo isso.
Alguém já lhe deve ter alertado antes de mim.

Me ignore

Eu
digo coisa
com coisa
Sou doido.
Não note,
Não ligue.
Me ignore.

Hoje, ontem e amanhã

Hoje
eu te amo
mais do que ontem
e te amarei ainda mais
amanhã
se eu puder

terça-feira, 4 de outubro de 2011

Fragmentos de realidade

Tentou abraçar o mundo
mas o mundo
e suas guerras
e suas gentes
e sua fome
não deixou ser abraçado
porque o mundo que ele via na tevê
e o mundo de verdade
não podiam ser comparados:
um cabia numa caixa de plástico,
o outro jamais poderia ser pesado,
medido, equacionado
porque a dor, o riso e o céu
não se limitam a um quadro,
a um momento fragmentado
exibido como realidade.

Das coisas inúteis da vida

Para alegria ou infortúnio da Nação, criou-se o Dia da Motocicleta, afinal, é muito importante homenagear esse veículo tão barulhento e petulante. Não sei que falso poder ele confere aos motociclistas, que se acham no direito de ultrapassar os automóveis, com o risco até mesmo de lhes arrancar o retrovisor - sem falar nos inúmeros riscos que essa manobra representa, inclusive para eles mesmos. Acredito que, nas autoescolas, antes de oferecer carta branca para esses assassinos em potencial saírem matando, deveria-se oferecer certificado de boas maneiras. Sei que esse tipo de educação adquire-se em casa, mas certos lares, desestruturados como são, não oferecem estrutura para esse cuidado.

Também criou-se o Dia do Sorvete, homenagem bem merecida, pois sem ele, o que seria de nossos calorosos dias tropicais? assim como também são importantes o Dia da Pamonha, o Dia da Goma de Mascar (ou chiclete) e o Dia do Bigode.

Não tem ímpetos a criatividade humana para coisas inúteis, e isso não se limita apenas à criações de datas comemorativas; há também os inventores. Ainda um dia desses vi na televisão um sujeito que se gabava de ter criado um coçador de cabeça. O aparelho era até interessante, mas sua utilidade não compensava o preço. Ainda prefiro usar os dedos para aliviar coceiras e comichões.

Mudei de canal e me deparei com outra propaganda, essa apresentando um produto mais sofisticado, com ares futuristas: uma esteira cuja funcionalidade não era fazer correr, você subia nela e seu corpo começava a tremelicar. A explicação era que os músculos ficavam mais definidos com a tremelicagem. Só a propafganda, no entanto, não convencia - pelo contrário, causava repulsa ver toda aquela gordura tremelicando. Então, uma bela voz máscula anunciava que aquele produto já fora utilizado por estrelas de Hollywood, como Angelina Jolie e Tom Cruise. "Ligue já para o número em sua tela e peça o seu!"

Mudo novamente de canal e me deparo com uma bunda enorme sofrendo apalpada, repuxões e espremidelas por mãos que se faziam entender especialistas. Não espero para saber do que se trata. Desligo a televisão e vou ler um livro. ( Atualmente estou lendo "O Lado Ativo do Infinito", de Carlos Castañeda. Muito bom. Recomendo.)