quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Em nome de nossa amizade

A última vez em que a vi fazia um calor de lascar, mas ela parecia não se incomodar com aquilo - usava óculos escuro e sobretudo pesado, mais parecia Sherlock Holmes do que minha velha melhor amiga. Perguntei se não estava sentindo calor. "Não, claro que não", respondeu ela com naturalidade. Estava bem como estava. Era hábito seu vestir-se daquela maneira, assim não poderia ser notada com anta facilidade. E de fato levei algum tempo para reconhecê-la quando a encontrei recostada à parede de um barzinho imundo, debaixo de um alpendre. Ela me estendeu um pacote, cautelosa, olhando repetidamente para os lados.Agia como se estivesse cometendo um crime.

- Faz tempo que estava guardando isto aqui para você - disse ela de maneira apressada. - Não é grande coisa, é só uma lembrancinha que comprei numa lojinha de variedades e pensei em comprá-la para você, um presente em nome de nossa amizade.

Eu não esperava grande coisa, como uma Mercedes ou um bilhete premiado da Loto Só o fato de estar ali, pertinho da minha amiga, depois de tanto tempo ausente, já bastava por tudo.

Desembrulhei o pacote ao mesmo tempo que abri meu melhor sorriso - coisa natural, não premeditada.

- Que lindo! - foi tudo o que consegui falar, antes que ela me atacasse com os braços abertos.

Nosso reencontro foi breve, mas intenso. Depois disso tivemos uma discussão e nunca mais nos vemos.


P. S - O presente era um pequeno cartão com a foto de dois filhotes de gatos abraçados um ao outro. No verso do cartão, um pequeno poema onde ela dizia o quanto era bom estar comigo e poder contar os problemas. No rodapé, uma breve dedicatória:

de Ana Paula
para Gustavo.

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Quanto tempo mais?

 Há quanto tempo Você está aqui, nem sei. Talvez milhares ou milhões de anos - quem sabe? Diante dos Teus olhos desfilaram todas as dores e alegrias da Humanidade, coisa que só vi - e mal - nos livros de história. Viste os dinossauros e os primeiros passos do homem, que carregava um pedaço de osso, e agora uma metralha. Antes lutávamos pela sobrevivência, apenas contra eventuais predadores; hoje, lutamos por estupidez, somos predadores de nós mesmos. Criamos a tecnologia para melhorar nossas vidas, mas como ela nos tem angustiado! Deixou-nos ilhados diante de nossos computadores, como escravos, presos a redes sociais, vivendo uma sub-vida imaginária, enquanto a vida real se vai e vai, como areia correndo entre os dedos, e de repente nos vemos de cabelos brancos e rugas na cara, diante da questão: "E agora, José?". Pena que não existam máquinas do tempo. Seriam úteis nesses tempos de avanço, em que a ordem é progresso! progresso!, consumir! consumir!, construir! construir!, e não se respeitam os próprios limites e os limites impostos pela Natureza, que responde a toda essa loucura com seu peremptório BASTA!! Assistam à televisão, está tudo lá: enchentes, furacões, terremotos...

Falando em televisão, lembro-me que ainda há alguns dias estava-se lamentando o 11 de Setembro, aquele atentado terrorista ao World Trade Center que abalou a História do Mundo, embora o evento tenha sido apenas local. Os americanos estavam nostálgicos e melancólicos, recordando e lamentando seus mortos, que não passam dos três mil e poucos. Daí pensei comigo: Poxa, se estavam todos tão nostálgicos, por que não cavar um pouquinho mais o tempo e lembrar que foram os Estados Unidos os maiores responsáveis pela verdadeira  maior tragédia de todos os tempos: o lançamento de bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki? Por que não cavulcar um pouco mais e lembrar que foi esse mesmo país o patrocinador da Guerra no Vietnã, evento que rendeu muito mais mortes do que um ataque ao ego americano?

Vai parecer loucura minha, mas acredito piamente que nossa vida é regida por uma lei básica universal: o que fazemos contra nosso próximo, reincide sobre nós mesmos. Portanto, acreditando nisso, é fácil entender por que aquele país tem sofrido tantos ataques terroristas e tantas crises.

Ainda custará muito para que o ser humano entenda a importância de seu próximo? Quantos inocentes mais terão que morrer, quantas guerras ainda teremos que enfrentar, para que enfim compreendamos que somos uno com o Todo, e que raça ou crença ou ideologia partidária são apenas coisas superficiais, e nada dizem sobre o Eu de cada um? Quanto tempo mais teremos que conviver com a fome, a miséria, as injustiças sociais e a corrupção com a qual, nós brasileiros, lamentavelmente estamos tão familiarizados? Quanto tempo mais?

sábado, 17 de setembro de 2011

Duas cartas

Era carnaval. O ano... Isso importa mesmo? Não, não importa. Importa que, enquanto o Rio de janeiro e as demais cidades festeiras comemoravam, enquanto as escolas de samba escolasambavam e os corpos requebravam, um sabiá-coleira morria em sua gaiola... de velhice, imaginem! A seu lado, sua dona chorava; tinha apenas nove anos. Era justo que aquelas coisas acontecessem? Ela não compreendia, assim como também não compreendia por que Deus dava tanto a uns, enquanto os que realmente precisavam morriam de fome.

Decidida, levantou-se de onde estava, foi preparar um caixão para seu amiguinho, do tamainho que lhe competia; uma caixa de sapatos serviu. Também escreveu dois bilhetes, que guardou secretamente, para que ninguém os descobrisse. Um, destinou-o a Deus. Em letras redondas, disse-Lhe que não eram justas as coisas aqui embaixo; se Ele era mesmo bom, como todo mundo dizia, que desse um jeito de acabar com as guerras, a fome, a violência... enfim, com todas as coisas que enfeiavam a Terra.
A segunda carta era destinada a Papai Noel. Nela, a menina apenas fazia um pedido: que no próximo natal lhe desse um sabiá com certificado de garantia.

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Onde vende amor

Para Michele

Dizem que amar custa caro
mas eu não sei onde vende amor;
se soubesse, iria lá,
compraria dois quilos de felicidade
e dividiria contigo.
Barganharia a felicidade
como quem barganha peixe
para que nunca mais visse
uma lágrima afogar teu riso.

domingo, 11 de setembro de 2011

Indefinido

Amor, não sei o que é
e duvido que alguém irá saber.
Ainda não inventaram dicionário
para as coisas do coração.

Ainda bem!
Porque, no dia em que eu descobrisse
o significado desse rebuliço
que me dá na barriga
toda vez que vejo minha queridinha,
isso deixaria de ser amor,
deixaria de ser magia!

O despertar

Para minha irmã 

Hoje, tudo o que desejo
é beber um pouco dessa paz,
dessa tranquilidade que emana
de uma manhã de domingo:
o orvalho desperta para o sol,
que desperta para o horizonte,
que desperta para os meus olhos,
que despertam para um novo dia
que desperta

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

Janela do mundo

Quero uma janela que dê para o mar,
todas as manhãs contemplar o retrato natural
da grandeza invejável do nascer do sol
do lado de cá do mundo, terceiro mundo,
e me render ao azul-imensidão
e mergulhar na profundidade de tudo
e viver como se cada momento fosse único
para nada perder ou mesmo ignorar.

De volta à vida



Tudo começou a partir de uma coceirinha gostosa entre os dedos do meu pé esquerdo. Achando que fosse coisa que passaria logo, não dei tanta importância ao caso. Toquei a vida como quem tocasse carro de bois.

Devo admitir que , depois de alguns dias, estava começando agostar daquela coceirinha, afinal tinha algo a que dirigir meus pensamentos. Todas as noites, ao término de uma exaustiva jornada de trabalho, atirava-me no sofá e arrancava os sapatos para aliviar a comichão que fazia festa entre meus dedos.

Numa dessas ocasiões, porém, me vi surpreendido. A pequena vermelhidão entre meus dedos havia tomado proporções assustadoras, invadindo territórios vizinhos. Como se não bastasse, também deu a latejar. Semanas depois, sequer estava conseguindo calçar um sapato.

Fui ao médico. Ele disse, com aquele ar de sabichão que só os médicos sabem fazer, que o caso era grave, muito grave.

- Vou ter que me submeter a uma cirurgia? - perguntei, já prevendo o pior.

- Não - ele respondeu assim mesmo, fria e secamente.

-Meus dedos serão amputados?

- Também não.

- Que raio vai me acontecer, afinal?

Ele me receitou uma pomada, uma reles pomada de farmácia, adquirida pela quantia exata de R$ 1,20. Fiquei fulo da vida. O que aquele doutorzinho de quinta estava pensando? Eu não estava sendo paranoico, juro por Deus!

Fui a uma mãe de santo e ela me receitou umas mandingas infalíveis. Ora, ao menos alguém me levava à sério!

As mandingas não funcionaram, e acho até que exerceu um efeito inverso, pois logo em seguida me atacou uma febre inexplicável e umas dores nas tripas. Talvez o santo não tenha ido com a minha cara, o que é naturalmente justo, pois não é de agora que ando fazendo o sinal-da-cruz toda vez que encontro um despacho no meio do caminho.

Fui à igreja. Disseram que eu estava com o demônio e que Deus iria expulsá-lo de mim. Não sei se expulsou, ou se o demônio realmente esteve em mim; o fato é que as orações de nada adiantaram.

Voltei ao hospital, na esperança de que daquela vez ficaria dias internado. Mas que nada! O mesmo médico me receitou uns xaropes e me mandou de volta pra casa.

Dias se passaram, e nada de melhoras. Já não mais acreditava em remédios ou milagres. Havia feito um trato com a morte: que ela me levasse de uma vez, e eu não me importava com o lugar para onde iria.

Porém Deus, que é sempre misericordioso, dirigiu seu olhar a esta pobre e ignóbel criatura e enviou um de seus anjos a meu leito de morte.

- Miguel? perguntei, e a mais bela de todas as vozes respondeu: "Sim!" Senti o ar estremecer.

Tudo ficou muito claro, como se o próprio Astro-Rei houvesse invadido meus aposentos. Uma súbita alegria apoderou-se de meu peito, então sorri. Estava de volta à vida.




segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Salva pelo não dito



Quando a conheci, ela estava chorando. Meu primeiro impulso fora lhe dizer alguma coisa bonita que lhe servisse de consolo. Mas nada me vinha à cabeça. Então fiquei calado, sentei-me a seu lado e envolvi seus ombros. Apertei-a o máximo que pude, até que ela parou de chorar; enxugou as lágrimas e me olhou direto nos olhos, seus olhos úmidos que eram como espelhos a refletir minha própria imagem. Tentei decifrá-los, em vão. Tudo o que consegui fora ficar ainda mais confuso.

De repente, sua voz quebrou o silêncio. Contraditoriamente, soava firme, como vinda de quem estava certo quanto ao que dizia.

Agradeceu-me por estar ali. Caso houvesse chegado segundos depois, talvez não a encontrasse mais. Estava disposta a cometer uma besteira... e por um motivo tão bobo. Agora ela sabia, porque eu estava ali. Um completo estranho havia lhe dito tudo sem dizer nada.

Levei-a para casa. Ela morava a dois quarteirões, criava gatos e passarinhos. Ri da combinação perigosa. Ela então esclareceu: não juntos.

No meio da sala, tropeçamos em alguns objetos espalhados. Ela disse que gostava de tudo assim, bagunçado, porque ficava mais fácil quando queria encontrar alguma coisa. Era avessa à arrumação, por isso não ia com tanta frequência à bibliotecas; quando tinha que fazer compras, mandava um menino em seu lugar e, em troca do favor, dava-lhe uns agrados.

Estranhei sua mania, mas não disse nada. Eu mesmo, às vezes, detesto coisas organizadas, principalmente quando estão em sequência alfabética. Mas também não sou fã de bagunça, principalmente quando se trata do meu armário. (Tenho uma mania esquisita: gosto de guardar as camisetas em ordem de tonalidades, do mais claro para o mais escuro, da esquerda para a direita. Meu pai também tinha esse hábito, portanto, acho que estou, inconscientemente, mantendo uma tradição.)

Sentei-me no sofá. Ela disse que iria preparar uma café, não demorava )"Açúcar ou adoçante?", "Açúcar, por favor."). Enquanto isso, deixou-me ouvindo algumas músicas do Tim Maia.

Estava distraído quando um objeto felpudo roçou de leve minhas pernas. Instintivamente, quase o chutei para longe - e justo no momento em que ela voltava com o café.

- Ah, vejo que também já conheceu o Bonifácio!

Tomei o gato peludo e excessivamente bonachão nos braços. Pesava tanto quanto um bebê recém-nascido.

- Acho que foi ele quem me conheceu primeiro - disse eu, acarinhando Bonifácio em meu colo. Pouco depois de nos conhecermos, o gato já se achava dono de mim, estirado sobre minhas pernas e ronronando à maneira dos felinos.

Beberiquei o meu café sem nenhuma pressa, enquanto conversava bobagens com a moça estranha que, aliás, chamava-se Cristina. Em nenhum momento me revelou o motivo que a levara a tentar suicídio, nem eu estava mais interessado nisso. Contentava-me agora em vê-la bem. Não chorava mais, e até havia se posto filosófica, dizendo coisas bonitas da vida