sexta-feira, 29 de julho de 2011

Família feliz

 

Quando a tv lá de casa quebrou, foi um Deus nos acuda para minha irmã. O que ela faria da vida sem suas novelas? Meu padrasto também ficou em situação desesperadora: uma semana sem assistir aos filmes policiais de que tanto gostava parecia o fim do mundo. Mamãe não externou sua indignação, mas eu sabia que, no fundo, no fundo, a tv também lhe fazia enorme falta.

Devo admitir que nossa velha companheira não me fez nenhuma falta (não tenho hábito de assistir televisão, prefiro me distrair com meus livros e meus escritos - a programação água com açúcar da TV brasileira também não contribuindo muito para ganhar minha simpatia). Portanto, fui o único a não ficas largado pelos cantos da casa, abandonado ao tédio. Minha irmã, ao contrário, trancou-se por dias no quarto. Meu padrasto procurava chegar mais tarde do trabalho e mamãe tornou-se mais religiosa, passando a maior parte do seu tempo na igreja. Os raros momentos em que nos reuníamos resumia-se aos horários destinados às refeições, e mesmo assim não nos comunicávamos - sequer olhávamos para cara um do outro. O maior diálogo que mantínhamos era: "Me passa a manteiga?", ou então " Onde você guardou o pote de biscoitos?"

Um dia sugeri que escolhessem um dos meus livros para lerem nos momentos de ócio. Mamãe fez cara feia, a única coisa que lia era o Livro Sagrado - mais nada. Meu padrasto alegou que estaria tão consumido pelo trabalho, que não teria disposição para nada, só mesmo para descansar. Minha irmã foi a única que tocou no meu livro, porém nunca soube se de fato o lera.

Quando dias depois a tv finalmente voltara do conserto, foi uma alegria - eu diria até que nossa vida voltou à normalidade. Minha mãe agora sorria, como antes; minha irmã não reclamava mais tanto da vida, do quanto era tediosa; e meu padrasto retomou sua rotina normal de trabalho, voltando para casa nos horários habituais. Em outras palavras, éramos novamente uma família feliz.

segunda-feira, 25 de julho de 2011

A perdição dos homens

A perdição dos homens
não são as mulheres, nem o dinheiro,
fama, sedução, drogas ou riquezas,
a condenação eterna no mais profundo abismo.
A perdição dos homens
não é ter morrido sem a chence do arrependimento,
hipocrisia usada como borracha para os erros
- é ter vivido
e nunca ter gozado plenamente
a vida e a felicidade.

Sem redenção

Amanhecer e não te ver ao meu lado,
tão distante de mim que ficou,
é como acordar e não ver a alvorada,
entardecer e não ter o sol a se pôr.
É como ouvir música sem melodia,
pular carnaval sem folia,
andar na chuva e não se molhar
nem pegar um refriado.
É como querer alçar voo
e não ter imaginação;
querer ganhar o mundo
e não ter ambição.
É como morrer
e ainda assim viver
sem redenção.

Solidão

Então é isto a solidão,
esse vazio,
esse oco,
esse vácuo,
esse querer te ver,
te tocar
te sentir,
escutar a sua voz familiar
dando-me uma bronca
por não ter ido ao mercado
quando me pedira?
Ou será a impossibilidade
de recuperar o que foi perdido,
de voltar no tempo
e desfazer o que estava consumado?

Constatação

Já é tarde, eu sei.
Deveria me recolher
e me conformar,
Mas não faço
e me revolto
e me indgno
e me exaspero,
porque há um minuto você estava aqui
e deixei que escapasse entre meus dedos.

Arrependimento

Se você tivesse ficado
ainda mais um dia
eu teria consertado tudo,
teria te amado
como você merecia.
Mas fui um tolo.
Peço perdão
e me calo.

Sem ela

Sem ela não há céus,
não há sóis,
não há primaveras
nem carnavais.
Sem ela, 
nem mesmo há temporais,
dias sombrios de noites prolongadas
e madrugadas eternas.
O que resta, sem ela?
Esse vazio abissal,
esse oco,
esse buraco que atravessa o mundo,
transpassa os infernos
e vai pousar em terras orientais;
a lembrança resgatada
em cada som, cada ruído, cada objeto,
cada verso de poesia.

Página solta

Minha vida
é como página solta no vento:
pode ir para frente, pode ir para trás,
pode seguir por ermos caminhos,
pode perder-se para nunca mais.

Imagem na tv

Ainda há pouco
liguei minha televisão
e uma triste cena
me comoveu o coração:
homens digladiando-se
em campos de batalhas,
cavando suas sepulturas,
cerzindo suas mortalhas.
Meu coração chora
em ver a triste cena.
Peço a Deus que, sem demora,
nos absolva dessa pena

quinta-feira, 14 de julho de 2011

Líquido mágico

Na minha vida, só recentemente o livro veio assumir posição de destaque. Quando eu era moleque, estava ocupado demais, jogando bola, tomando banho de riacho, catando caranguejo - não me sobrava um minuto sequer para o livro.
Na escola, me tentaram meter o livro de qualquer jeito - apresentaram-me livros coloridos, abarrotados de figurinhas coloridas e só aqui ou acolá uma frase solta ("O sol é amarelo") - , mas eu não me emendava. Mal chegava em casa, jogava o livro para debaixo da cama e corria para a rua.
Só aos doze anos cheguei a me interessar pela leitura. Bem antes disso, porém, a ânsia pelo saber já havia aflorado em meu espírito. Dei a fazer perguntas sem parar, torrando a paciência de meus pais que, sem outra alternativa, findavam me dando uns petelecos. Queria saber por que o sol era quente, por que a nossa cachorra não podia falar como gente, por que o vento soprava, por que anoitecia, por que a água do mar era salgada, se a chuva que caía era doce. Por quê? Por quê? Por quê? Inúmeras perguntas. Para algumas delas, encontrei respostas em livros; outras, permanecem comigo como um desafio ao tempo e uma prova de que, por mais que cresçamos, jamais seremos capazes de aprender tudo.
O meu maior sonho, então, era ser cientista. Desde quando ouvira falar de Albert Einstein, me apaixonara pela Ciência. Aquele homem esquisito de cabelo desgrenhado e língua de fora exercia enorme influência sobre mim. Queria ser como ele, inteligente, engraçado.
O livro que mudaria para sempre minha vida chamava-se "O Rapto do Líquido Mágico". Contava a história de um menino inventor que criara um líquido mágico capaz de colorir todas as coisas. Fiquei encantadíssimo ao terminar aquela leitura (o primeiro livro que havia lido até a  última página). Dei também a inventar coisas. geralmente mistura de água, terra e sabão que eu chamava de "líquido mágico" Saí por aí borrifando meu líquido mágico pelos cantos. Acreditava que ele tinha o poder de deixar tudo mais colorido.
Naquela época, minha irmã vivia cheia de vermes, de modo que sua pele tinha uma constante aparência amarelada e seus olhos eram como os de peixe morto. Apiedei-me dela. Ela precisva de um pouco mais de cor. E lá fui eu realizar meu intento humanitário. Esborrifei meu líquido mágico na cara dela. Aos berros, ela foi contar tudo para mamãe. Levei a maior surra de toda a minha vida.
Houve, entre os meus quatorze e dezoito anos, um curto período em que me afastei da leitura - mas não sem motivo justificável: agora, não mais o futebol nem os banhos de riacho, mas as namoradinhas que ocupavam, a bem dizer, todo o meu tempo disponível, toda a minha vida. Não tinha cabeça para mais nada, nem mesmo para os estudos, de modo que acabei repetindo alguns anos.
Época de inconstância emocional, me apaixonei e me decepcionei por inúmeras garotas. Na verdade, qualquer uma que aparecesse diante de mim despertava minhas fantasias apixonadas. Não precisava me dar bola, bastava passar na minha rua e eu ficava imaginando que éramos amantes, que um dia estaríamos passeando de mãos dadas por aquelas calçadas.
O amor pelos livros só voltou quando vim morar em Fortaleza e arranjei um emprego (meu primeiro emprego) como agente de leitura numa biblioteca comunitária. Passei a viver cercado de livros dos mais variados tipos e autores. Entre eles, reencontrei o livro de minha infância. Não tenho vergonha de admitir que chorei ao reencontrá-lo uma segunda vez, depos de tanto tempo.
Cresci e a paixão pela leitura nunca mais me abandonou. Hoje, procuro seguir os passos daqueles que me serviram de inspiração. E, com meus passos cambaleantes - ora tropeçando aqui, ora acolá -, vou seguindo por caminho tortuoso, certo de que as coisas, um dia, acharão o seu lugar.

À espera de um milagre

Ele não era um menino rico. Nunca tivera brinquedo caro nem nunca morara em casa de luxo. Contentava-se com  três refeições diárias - às vezes, nem isso. Quando podia, ajudava a mãe nas tarefas de casa. Ela, mesmo doente, procurava sempre dispensar a ajuda do filho, pois queria-o na escola, tinha esperanças de transformá-lo em doutor. No entanto, recebia como bem-vinda a contribuição do menino quando a dor de cabeça lhe era insuportável. Fora ao médico algumas vezes. Da última, voltara com o coração pesado: um tumor maligno havia se alojado em seu cérebro, numa região onde não podia ser operado. Poucos dias de vida lhe restavam.
Seus olhos enchiam-se de lágrimas ao pensar nisso. Seu filho, o que seria dele, sozinho neste mundo? Como ia tocar a vida? Temia que, sem perspectivas, partisse para o caminho do mal. Era o que geralmente acontecia. Os noticiários sempre estavam anunciando mortes de adolescentes que se envolviam no mundo da criminalidade.
Ao mesmo tempo que pressentia o fim, seu corpo fraquejando lentamente, rezava a Deus, todos os dias, para que algo acontecesse - uma cura milagrosa, talvez, por parte dEle ou da medicina.
 Mas não aconteceu. Três meses depois, numa cama de hospital e em estado irreconhecível, havia morrido silenciosamente. Seu filho, ao lado, apertava-lhe a mão, como se, numa tentativa inconsciente, quisesse agarrar seu espírito, que voou como borboleta arrastada pelo vento.
Ele seria um bom menino, prometia. Faria de tudo para vencer na vida e dar aos filhos o que ele mesmo nunca pudera ter. Frequentaria a escola mais assíduamente. Formaria-se doutor, como a mãe tanto quisera.

terça-feira, 12 de julho de 2011

Ser bailarina



Desde pequena seu maior sonho era ser bailarina, e já cedo ensaiava seus primeiros passos. Rodopiava, rodopiava, rodopiava; no meio da sala, no jardim ou mesmo trancada em seu quarto. A mãe advertia que ela pudesse se machucar, ficar tonta e cair no chão, mas a menina não dava ouvidos - não que fosse uma filha desobediente, mas por tudo aquilo fugir de seu controle. Não raro, imaginava-se num salão luxuoso, cercada de pessoas bem vestidas, para quem dançava e era calorosamente aplaudida. Outras vezes, via-se num importante evento de gala, sendo premiada como a maior bailarina de todos os tempos; a mãe também estava lá, e era quem mais ovacionava. Na escola, muitas vezes fora chamada à atenção, pois distraía-se facilamente, deixando de lado a aula para desenhar nas margens de seu caderno pequenas bailarinas rodopiantes. "Um dia vou ser gente grande", pensava ela, emburrada por ter sido tirada de seu devaneio tão abruptamente, "e não vou mais ter que vir à escola. Vou ganhar dinheiro, ser famosa e muito feliz."

Os anos foram passando. Veio a adolescência, as primeiras espinhas e as incomodantes cólicas menstruais. As bonecas foram substituídas por um primeiro namorado e os livros de fadas, por romances melosos de finais previsíveis; orgulhava-se de possuir em sua prateleira a coleção completa da saga de vampiros criada por Stephanie Meyer, sensação entre as garotas de sua idade.

Outros sonhos vieram e se foram com as águas turbulentas em que sua vida havia se transformado. Quanto ao seu sonho de menina, ela nunca chegou a ser bailarina nem entrara para uma escola de balé, mas ainda guardava os muitos desenhos e rabiscos que fizera em seus tempos de infância.

sábado, 9 de julho de 2011

Abracadabra

Ele precisava estudar, as provas começariam no dia seguinte e ele nada sabia além do pouco que lembrava das aulas de biologia: gene, DNA, mutação - apenas palavras soltas que não lhe serviriam para muita coisa. Mas o livro enorme o desanimava; sentia um bocejo se aproximando só em pensar na quantidade de páginas que teria de ler. Por que as coisass tinham que ser tão complicadas quando o que ele mais queria era justamente uma fórmula para descomplicá-las? Se magia existisse, tudo seria resolvido com um simples  abracadabra."Abracadabra!" - e a escola desapareceria para sempre. "Abracadabra!" - e as provas não seriam mais necessárias. "Abracadabra!" - e todo dia seria dia de algum santo, assim nunca mais haveria aula. Mas ali estava o livro detestado, a sua cama, o seu quarto. "Abracadabra!" - e o menino adormeceu com a cara entre as páginas.

O móvel estranho

Sempre desconfiei que meus vizinhos escondessem um segredo comprometedor. Estavam sempre de cortinas cerradas, mal saíam durante o dia e quando saíam era algo tão repentino que minutos depois você ficava se perguntando se aquilo de fato acontecera ou se fora obra de sua imaginação. Talvez fossem foragidos da polícia, vivendo sob identidades falsas, ou terroristas que planejavam um ataque em larga prorporção - era difícil saber. Pelo sim ou pelo não, ali estava uma coisa que deveria ser investigada.
Passei dias trepado na goiabeira do meu quintal, lugar estratégico de onde eu podia ver toda a movimentação da casa vizinha. Porém nada mais suspeito do que eu já suspeitava acontecera. O dia deles era monótono, tanto que uma hora acabei entediado e desci da árvore. Mas foi justamente quando algo aconteceu. Voltei para o meu posto de observação e agucei todos os sentidos. Um som estranho vinha de uma das janelas da casa. Parecia ser de uma canção, mas não daquelas tocadas em rádio; era mais viva e mais bonita, como se possuísse alma prórpia. Tentei me aproximar um pouco mais, escalando os galhos mais altos, até que a árvore não aguentou o peso excedente e juntos fomos ao chão. Quando me recompus, estava no terreno vizinho. Entrei em pânico. A música havia sido bruscamente interrompida minutos depois de me encontrar naquela situação; alguém havia notado minha presença. Corri de um lado para o outro feito barata desnorteada, não encontrando moita ou montinho de terra onde pudesse me refugiar. Decidi me render quando abriram a porta dos fundos e me flagraram. Uma bela mulher  sorriu e perguntou meu nome. "Eugênio", menti descaradamente. Num instante ela ficou séria, como se houvesse desmascarado a mentira, mas pouco depois voltou a sorrir e me convidou para entrar. Havia preparado alguns docinhos.
Levei algum tempo até decidir o que faria: se permanecia onde estava, parado, feito uma estátua ridícula, ou se a seguia. Não fora exatamente daquela forma que João e Maria haviam sido enganados pela Bruxa? Mas aquele não era um conto de carochinhas -  era a vida real, palpável, lúcida, vivível - e na vida real  poucas coisas eram possíveis. Você poderia ser atropelado por um carro ou mesmo ser vítima de um atentado, mas nunca seria devorado por uma bruxa ou enfeitiçado por alguns docinhos encantados. Se ainda me restava alguma dúvida a respeito do caráter daquela moça, essa dúvida foi totalmente dissipada pelo irresirtível aroma de bolo fresquinho que vinha da cozinha.
Fui conduzido casa adentro, cômodo após cômodo, pela mão fria da moça que me prendia pelo braço. Vendo de perto os móveis (quase podendo tocá-los de tão próximos, não fosse o receio de quebrá-los) eles agora me pareciam menos suspeitos; não passavam de móveis comuns, muitos até bem parecidos com os de casa. Mas ao passar pela sala de visitas, um móvel estranho me deteve a atenção, fazendo-me estacar a poucos metros dele. A moça sorriu gentilmente e perguntou se ainda queria os biscoitos. Diante do meu silêncio ela se dirigiu ao móvel e sentou-se numa banqueta atrás dele. Em poucos minutos começou a arrancar de suas entranhas sons tão harmoniosos que por um instante imaginei estar no paraíso e  que a moça fosse uma fada, não mais a bruxa que eu temia. As mesmas notas que me atraíram até ali agora juntavam-se  formando uma melodia que emanava do móvel estranho e propagava-se por todo o ambiente, como uma fonte de prazer. Sentei-me no chão e fechei os olhos para absorver melhor toda aquela maré de êxtase. Era o que fazia quando queria tornar  minha alguma coisa nova. Imaginava que era o dono daquilo e desfilava na rua, pomposo, só para fazer inveja à molecada.
Mas de súbito a música cessou, como um sopro interrompido, e tive de abrir os olhos novamente. Mergulhada no silêncio, a casa voltou a assumir sua antiga forma de mistério. Senti as mãos delicadas e frias da moça tocarem meus pulsos. Ela havia sentado-se diante de mim, no assoalho. Seus olhos lustrosos fitavam os meus. Pude então perceber que havia chorado... e muito, tanto que a ponta de seu nariz estava vermelha. Após um longo silêncio de intensa contemplação, enfim ela me confessou com um ar pesaroso que partiria em breve, nunca mais voltaria.Se quisesse, eu poderia ficar com o piano. Ela o deixaria como um presente para mim.        
Em algum lugar da minha consciência  eu sabia o quanto de eternidade carregavam as palavras "nunca mais"; era muito pior que um mero adeus ou um "até logo". Porém estava tão absorto com o eco da canção ricocheteando nas paredes da minha memória que não pude me dar conta da gravidade de tudo aquilo.
Passei dias aéreo, reproduzindo monótonamente a velha canção em minha cabeça. Quando voltei à realidade, meus vizinhos haviam partido. Conforme  prometido, a moça deixara o móvel estranho. Solitário no meio da sala, mais parecia um objeto fantasmagórico. Nunca mais ouviria fluir música de suas entranhas, e nunca mais eram palavras que carregavam em si um tempo que não podia ser cronometrado. Levou anos até que eu esquecesse tudo e voltasse a ter uma vida normal.

O último encontro

A noite estava majestosa quando Eliete desceu as escadas apressada, pulando dois degraus de uma só vez. Seu coração palpitava de felicidade mais do que de exaustão; na verdade, mal notava o esforço que fazia para alcançar o andar inferior antes que a campanhia cessasse de tocar. Abriu a porta e quase em seguida saltou no pescoço de seu amado. Ele recendia a sabonete masculino. Ainda não notara o arranjo de flores que ele lhe trazia às costas. Gustavo tinha muito dessas delicadezas. A cada novo encontro ele a surpreendia com algum agrado: uma caixa de bombons, uma única rosa vermelha que exalava por semanas um perfume memorável ou uma revista de modas que ela ainda não havia encontrado. Se perguntasse: "Como conseguiu?", ele fazia um ar de misttério e desconversava. Se insistia, abraçava-lhe e beijava como se aquilo bastasse para aplacar sua curiosidade. Quase sempre o último recurso funcionava.
Daquela vez Gustavo lhe trazia um buquê de tulipas. Porém o que mais surpreendia era o modo como estava vestido: impecavelmente. Eliete não fez perguntas, apenas tomou-lhe o braço quando este lhe foi oferecido e ambos saíram para o passeio habitual.
As ruas turbulentas não impediram que aquele fosse um momento mágico. As luzes, as buzinas, o dióxido de carbono e os xingammentos - nada existia, apenas Gustavo e seu perfume de sabonete masculino.
Foram para um dos poucos recantos sossegados que a civilização poupara de seus apartamentos e outdoors. A estrada por onde seguiam ainda era de terra batida, porém a prefeitura já tinha seus planos sobre ela e logo ela estaria movimentada por um intenso trânsito.
No alto de uma colina estacaram. Ao redor outros casais de namorados riam baixinho. Sentaram sobre a grama úmida. Adiante a lua pairava, majestosa, num mar salpicado de pontinhos brilhantes. Ali estava a estrela que escolheram para si, maior e mais brilhante. Tinham plena consciência de que centenas de outros casais já haviam adotado a mesma estrela, mas aquilo pouco importava. O mundo era de todos e ninguém ficava ofendido em compartilhar do mesmo oxigênio no interior de um ônibus lotado ou de um elevador.
Naquela noite Gustavo estava mais retraído que de costume, apenas admirando a tudo numa contemplção muda, quase doentia, o cigarro na ponta dos dedos já quase de todo consumido. Atirou-o na grama quando sentiu o pequeno ponto de brasa aitngir seus dedos. Então acendeu outro, deu uma tragada e deixou que o restante se consumisse por si só.
Eliete sorriu e pediu um cigarro.
- Desde quando a senhorita fuma?
- Desde agora.
- Seus pais sabem disso?
- Tô pouco me lixando pra eles.
Deu uma primeira tragada e quase não conseguiu conter o acesso de tosse. Gustavo explodiu em gargalhadas, mas logo procurou socorrer a namorada. Tomando o cigarro de sua mão, deu uma tragada como para mostrar o jeito certo de fazer.
- Ora, não sou mais criança!, protestou Eliete.
Gustavo ofereceu-lhe novamente o cigarro. Ela recusou.
Momentos depois o silêncio reinava outra vez. Eliete pôde notar uma pequena ruga entre as sobrancelhas de Gustavo. Arriscou-se perguntar o que acontecia.
- Nada, ele respondeu.
- Ninguém fica com essa cara à toa.
-Aí é que está. De pouco em pouco as pessoas vão abandondo suas identidades e adotando um padrão comum de comportamento. Existe o jeito certo de estar preocupado, de estar triste ou de estar alegre. Eu não sou assim. Tenho um jeito só meu para cada coisa, e garanto que neste exato momentto não estou triste, nem preocupado ou com fome. Simplesmente estou sendo eu.
Eliete achou por bem não chateá-lo com mais perguntas. Fingiu acreditar no que ele dissera. A verdade era que alguma coisa estava acontecendo sim, porém ele não iria abrir-se nem ela iria forçá-lo.
Ficou sabendo no dia seguinte que há semanas ele estava de malas prontas para uma viagem de intercânbio ao exterior, só aguardando a data marcada. Sentira-se exasperada por ele ter-se mantido sigiloso todo o tempo. Por acaso não a amava? Era evidente que não, do contrário sequer teria viajado, mesmo que para cuidar do próprio futturo.
Enfurecida, tratou de jogar fora todos os presentes que em dois anos fora recebendo diariamente.Não queria nada em seu quarto que fizesse lembrar Gustavo. Porém nunca esquecera o perfume nauseante que dele recendia na noite do último encontro. Tinha ímpettos de incendiar todo o supermerrcado quando saía para fazer compras com a mãe e lá encontrava uma prateleira repleta com o mesmo sabonete.

Por uma boa causa

Mariana desconfiava que o namorado a estivesse traindo. De uns dias para cá, havia-o notado cada vez mais atencioso, mandando-lhe flores diariamente, acompanhadas de bilhetinhos apaixonados. Só podia estar enrolado com alguma outra e agora remoía-se de culpa! Mas se pensava que iria enganá-la com alguns agradinhos bobos - ah, mas estava muito enganado!
Mariana decidiu que deveria investigar mais a fundo a vida do namorado, seus antecedentes e qualquer outra coisa que pudesse incriminá-lo. Ia regularmente ao seu trabalho, a pretexto de matar saudades, e enchia-lhe de perguntas: A que horas voltaria para casa? O que faria depois do expediente? Por que não aproveitavam para darem um passeio? A noite prometia ser agradável.
Agora era Reginaldo quem estranhava: sua namorada estava ficando louca! O que faria agora para palacar aquela mulher? Dava desculpas. Não podia sair a passeios, estava exaurido pelo trabalho. Deixassem para o final-de-semana, então poderiam pegar um cinema.
Mariana não compreendia. O namorado nunca se recusara a nada antes, e só então vinha com aquelas esquisitices, alegando indisposição que nunca tivera. Antigamente, estavam sempre em concordância com tudo, e agora aquela dissensão. O namorado tinha outra. Sim, a outra estava roubando todo o tempo que era seu.
Um dia resolvera meter Reginaldo contra a parede, exigindo que confessasse sua culpabilidade.
O namorado esquivou-se o quanto pôde, mas no final acabou entregando os pontos: tinha sim uma namorada, e ela se chamava Beatriz.
Porém aquilo não bastava. Mariana queria mais, queria saber onde a rapariga morava, qual o número de seu telefone.
Reginalndo mentira sobre tudo, desde o início, afirmando que tinha uma amante. Dera um endereço qualquer para Mariana e um número de telefone inexistente. Mentira por uma boa causa. Ao menos a namorada agora estava satisfeita.

Livros e solidão



Era uma tarde de quarta-feira e, como de costume, eu me entregava aos prezeres de uma boa leitura, desfrutando da calorosa companhia de meu querido Fran Martins. Inesperadamente, entrou na biblioteca uma senhora de meia-idade e ficou rondando as prateleiras. Não liguei atenção à sua pessoa, de modo que não posso precisar ao certo se a mulher usava calça jeans ou se seu cabelo estava desgrenhado - essas fuilidades que geralmente nos prende a atenção quando não temos nada mais importante para fazer do que ficar reparando nos outros. Eu tinha muito o que fazer, portanto o que acontecia ao meu redor pouco importava; acredito até que, se caísse um aeroplano sobre aquela biblioteca, eu morreria agarrado ao livro do Fran Martins e iria para o céu tranquilo, se Deus me permitisse levá-lo comigo. Caso me negasse, eu daria meia-volta e aceitaria o inferno de bom grado, desde que me reservassem um cantinho para ler o autor querido. ( Sim, já me disseram que minha paixão pelo Fran é doentia. Bom, eu não ligo. Esse é um câncer que gostaria de levar comigo ao túmulo.)
A mulher ainda rondou as prateleiras por um longo período de tempo. Via-se que tinha gostos literários refinados, pois vasculhava as lombadas da ala reservada aos clássicos. Retirando um grosso volume, finalmente foi-se sentar na cadeira diante de mim, porém não o lera. A mulher ficou me encarando por um bom tempo, até que me fez uma pergunda indiscreta. Queria saber se eu era casado. "Não", respondi. Não era casado. Voltei à minha leitura, achando que enfim havia aplacado a curiosidade da mulher. Porém estava enganado. Logo em seguida ela me flechou com outra pergunta, direta, sem rodeios. Queria saber se eu tinha namorada. Não, também não tinha namorada.
"Que pena!", disse ela então. "Um rapaz tão moço..."
Eu não lhe tinha revelado minha idade, porém não era preciso possuir uma bola de cristal para se chegar a uma conclusão tão óbvia. Estava tudo na minha cara... ou nos meus olhos, para ser poético, embora eu nunca tenha sido capaz de revelar a idade de alguém apenas olhando-o nos olhos.
"Mas era de se desconfiar", continuou a mulher, não dando vez para que o assunto morresse. "Gente que vive metida com a cara nos livros é sempre solitária."
Meu dia, que até então estava indo bem, de repente ficou nublado. Quem aquela fulana estava pensando que era para falar comigo daquela maneira? Não tive cabeça para mais nada. Retirei-me da sala, carregando debaixo do braço o Fancisco.
Em casa, não tive apetite para o jantar. Tranquei-me no quarto e fiquei pensando no que a estranha me dissera ainda mais cedo: "Gente que vive metida com a cara nos livros é sempre solitária..." Que absurdo! A mulher não fazia ideia do que estava falando. Provavelmente estava bêbada ou era mais uma daquelas ignorantonas que se achavam donas de todo o conhecimento e de toda a verdade.
"Que absurdo!...", pensei comigo, e fui ao armário onde havia guardado o livro de Fran Martins, "Mar Oceano". Lancei-me na cama e retomei a leitura de onde a havia interrompido. No quarto silencioso, reinavam a paz, a noite e a solidão.

Um cara bacana

Na minha memória a imagem de meu avô materno sempre se conservou como um fantasma, uma sombra a bem dizer indistinguível num passado nebuloso. Nunca o cheguei a conhecer pessoalmente. Por uma tragédia do destino, vovô partiu-se desta vida antes que eu viesse a descobri-la. Todas as informações que tenho dele, portanto, são apenas relatos - e dos mais sombrios.

Por mamãe eu soube que ele era um bêbado. Poucas eram as vezes em que estava sóbrio para fazer um carinho na filha. No entanto, era de minha mãe que ele mais gostava. Quando estava doente e precisava de ajuda com os remédios, era a ela que ele procurava. Com sua maneira ríspida de tratar as pessoas, mandava que ela fosse à farmácia ou ao mercadinho de seu Carlito - e que segurasse bem firme o dinheiro, do contrário levaria uma surra que nunca mais esqueceria. Mamãe então apertava tão firme as moedinhas que vovô lhe confiava, que depois não conseguia mais libertar os dedos. (Certa feita, ao atravessar a rua, um carro surgido não se sabe de onde atropelou mamãe, jogando para longe seu corpinho magricela. Vovô, que acompanhava tudo da varanda de casa, prontamente acudiu a filha, mas para constar se ainda guardava o dinheiro que lhe confiara. Milagrosamente, mamãe apertava as moedinhas na palma da mão direita.)

Da parte de minha avó eu soube que ele era um brigão. Às vezes, quando estava bêbado, batia nela.
Uma das coisas que mais detestava era "o povo da igreja". Esse ele queria ver de longe, assim como o diabo quer ver distância da cruz. Vovó até que tinha esperanças de converter ele, mas o coitado morreu antes que pudesse ajeitar a vida. Mamãe acredita que agora ele esteja no Inferno, jogando baralho com o Satanás.
Como eu disse anteriormente, não cheguei a conhecer vovô pessoalmente. Mas, se o tivesse conhecido, não o julgaria assim, tão precipitadamente. Talvez houvesse existido alguma coisa boa dentro dele, é que ninguém se importou em procurar. Talvez mesmo ele fosse um cara bacana.

Como passe de mágica

Fico pensando comigo, pensando, pensando... Como seria maravilhoso se tudo o que desejássemos, pudéssemos ter em mãos - como num passe de mágica. Todas as coisas tristes desapareceriam do mundo. Não haveriam mais guerras, nem mortes ou assaltos. As pessoas seriam mais gentis consigo mesmas e com a natureza, aprenderiam a preservar as coisas boas da vida. Deus ficaria feliz  com todo mundo e faria chover purpurina.
Queria eu poder, com um simples estalar de dedos, tornar todas as coisas possíveis. Faria mamãe parar de pegar tanto no meu pé: menino, não faz isso! menino, não faz aquilo! Olha a chuva, manino! Vai pegar um resfriado! Também faria algumas coisas desaparecerem - como o dever de casa, por exemplo. Agora ele está ali, sobre a mesa, olhado para mim com cara feia. Fique sabendo que não tenho medo de cara feia não, viu? Mostro minha língua para ele. Sei que mamãe reprovaria essa atitude. Ela diz que isso é coisa de menino sem educação; menino direito não faz coisas como mostrar a língua, erguer o dedo do meio ou dizer palavrões. Bem, mas ela não está aqui para saber o que fiz.
Mal acabo de pensar nela e já ouço sua voz, vinda de algum distante lugar. Está dando uns carões em minha irmã. Mamãe vive fazendo isso, dando carões nas pessoas (mesmo nos adultos), é quase um hábito seu. Ela nunca vai se conformar com o namoro da filha. Mas não pode fazer nada além de gritar, como está fazendo agora. Sua voz é esganiçada. Tenho pena de minha irmã. Mas, por um lado, admiro-a. Não é qualquer um que teria fibra para aguentar tanto desaforo calado, isso é demais até para um filho. Eu já teria me alterado e feito alguma besteira.
Ouço passos se aproximando. Sei que é mamãe, pois ela tem uma cadência única em seu caminhar, batendo firmemente os calcanhares no chão, acho que para melhor intimidar.
Intimidar... Essa é a sua técnica para tudo. Às vezes, confundo-a com um general. Em casa, sinto-me numa base militar. Suas ordens devem ser obedecidas à risca, do contrário...
Sinto sua presença cada vez mais forte. Ela é como uma sol, irradiando calor a quilômetros de distância. Sua mão toca a maçaneta, gira-a vagarosamente. A porta range nas dobradiças.
Mais que depressa, corro para os meus livros e cadernos, finjo que estou empenhado no dever de casa. Ela olha, dá um sorrisinho sem mostrar os dentes, como se dissesse " muito bem, continue na linha", e vai embora. Volto para a janela e continuo observando a cinzenta paisagem urbana, pensando, pensando...