sábado, 17 de dezembro de 2011

Meu quase primeiro amor

O primeiro beijo a gente nunca esquece. O primeiro beijo perdido, menos ainda.

Eu estava na terceira série. Após curta temporada em Fortaleza, havia retornado para Santos. Naquela época, em dificuldades financeiras, não parávamos em canto algum. Além de São Paulo, também moramos no Rio de Janeiro, que de cidade maravilhosa não tinha nada. Para uma família à procura de um teto onde se abrigar, ela parecia bem cruel, cinzenta e fria, muito fria. Quando lá chegamos, desembarcamos de um avião da FAB, fazia no mínimo uns vinte graus. Eu estava sem casaco, tiritando de frio. Lembro da primeira indagação de mamãe, olhando para meu pai, ao tocarmos solo carioca: "E agora?".

Não recordo outro período da minha vida em que tenha sentido tanto medo e saudade; medo porque, pela primeira vez estava tão longe de casa, e já não acreditava mais que fosse possível voltar, mesmo embarcando em outro avião; saudade de tudo o que havia deixado para trás: brinquedos, amigos, primos. Eu me agarrava ao braço de minha mãe, juntamente com minha irmã, como se esperando que a qualquer momento alguém fosse levá-la de nós. Haviam rumores sobre um tal Conselho Tutelar, que costumava arrancar as crianças de seus pais. Naquela época eu não tinha noção precisa do que aquilo significava. Para mim, era como o Velho do Saco, carregando crianças sem nenhum motivo.

Novamente em Santos, nada parecia ter mudado; os rostos eram os mesmos, as casas permaneciam com a mesma fachada, até o cachorro vira-lata que latia para as pessoas na rua era o mesmo: cego de um olho, manco de uma pata, a penugem cinzenta que se espalhava por seu corpo esquelético. Tudo permanecia igual, principalmente na escola.

Não fui recebido com festas, não era um aluno popular - pelo contrário, era o mais acanhado, gostava de ficar no meu canto, falava o necessário com poucas pessoas. A não ser meu amigo Rafael, ninguém mais me deu boas-vindas, acostumados que estavam com aquele vai-e-volta. Quando nos conhecemos, ainda não havíamos entrado para a escola. Fazíamos parte de um grupo de teatro que ensaiava duas vezes por semana na biblioteca pública Plínio Marcos (uma das peças que mais ensaiamos foi uma especialmente produzida para a Primavera; eu faria o papel de árvore, e ele de gavião. É bem verdade que meu personagem não era lá o mais empolgante, mas eu sentia orgulho só em estar participando.). O que de imediato me chamou a atenção no Rafael, além do seu cabeção que era um colosso, fora o seu caderno repleto de letrinhas. Eu ainda não havia aprendido a ler, e logo aquilo me deixou mordido de inveja. Para completar o que eu achava o cúmulo da sapiência, ele disse que  tinha uma técnica para economizar as linhas do caderno: escrevinha tudo juntinho, sem deixar espaço entre as palavras; assim, sobrava mais espaço onde ele podia fazer os rabiscos que chamava de desenho. Ainda hoje me lembro da bronca que a professora lhe deu, quando entramos para a primeira série, e ela lhe pediu para ver o caderno.

Eu já tinha pouco mais de treze anos, mais ainda não pensava em namoradas. Estava distraído em outras coisas para pensar naquilo. Além do mais, havia o medo de mamãe, que não queria me saber namorando. Para ela, os estudos deviam ser minha prioridade.

No entanto, isso mudaria com a chegada de uma nova aluna no colégio, transferida da capital. Portanto, foi fácil para ela chamar atenção. os meninos se aglomeravam ao redor dela como se admirados com algum asteroide caído ou algum disco voador que houvesse pousado ali. Eu não me importava com o fato de ela ser da cidade grande, mais civilizada e urbanizada  que aquele bairrozinho de área insular. Estava mais embasbacado com a beleza dela. Era como um anjo: a pele alvinha, os cabelos compridos, negros e lustrosos que exalavam um cheio gostoso de morango quando ela passava. pela primeira vez eu sentia no peito aquela ardência que não conseguia explicar. Chamem isso de paixão à primeira vista.

Passei a fugir dela sempre que podia. Evitava corredores, refeitório e, mesmo em sala de aula, sentava longe, no fundão. Metia a cara no livro, quando a professora de matemática pedia que ela fosse à lousa, solucionar equações.

Com o passar dos dias, meu rendimento foi decaindo. Mais de uma vez, fui chamado a atenção pela professora, que não entendia o que estava acontecendo. Eu sempre tinha sido um aluno empenhado, agora estava relaxando. Havia um grando risco de não ser aprovado aquele ano.

Pouco importava. eu não estava ligando mais para aquilo.

O meu maior terror foi quando, um dia, na hora do recreio, a tal menina promovida a celebridade sentou-se ao meu lado com o seu lanche. Ofereceu-me um sanduíche, recusei. Ofereceu-me novamente, dessa vez fazendo propaganda: era de queijo e presunto, a própria mãe havia preparado. recusei com ainda mais veemência. Ela não insistiu mais. Comeu o seu lanche em silêncio, intercalando as abocanhadas com um ou dois goles de suco. Depois limpou as mãos, jogou o saco de papel na lixeira ao lado e continuou em silêncio. Sua presença me incomodou de maneira insuportável. Teria mandado ela ir embora, mas tive medo de ser grosso. Então eu mesmo levantei. Ela me segurou pela camisa, impedindo que eu fosse. Perguntou do que eu tinha medo, ela não era bicho, não mordia. Ficou de pé diante de mim, tinha quasse a minha altura. Olhou direto nos meus olhos. Fiquei sem jeito. Ela percebeu. Então sorriu. Perguntou novamente do que eu tinha medo. Não respondi. Na verdade, nem sabia mais se o que sentia era medo, talvez fosse apenas insegurança. Inconscientemente, segurei sua mão. Apertei-a, mas não a ponto de machucá-la. Depois tentei soltá-la, dando-me conta do que estava fazendo. ela me impediu. disse que gostava. Em seguida, aproximou seu rosto de meu, vagarosamente, como se não houvesse pressa. Senti sua respiração bem próxima a mim, suave como a brisa que soprava à noite, no cais do Porto dos Namorados. Bobalhão quer era, me afastei. Não sei o que a menina pensou na hora. Deve ter perdido a paciência, pois logo saiu, me deixando ali sozinho, como se tudo não houvesse passado de um sonho.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Encontro desencontrado

Combinamos que nos encontraríamos na Praça Coração de Jesus, uma pequena praça no centro de Fortaleza que ainda esconde, entre a sujeira e a depredação, seu charme de anos idos. Cheguei cedo. Não te vi. Esperei. desisti. Voltei para casa. te liguei. você disse que esteve o tempo todo lá, mas eu não te vi. Achei que você tivesse mudado de ideia, ou que a ideia de um reencontro lhe houvesse desanimado. Mas você estava lá, esperando por mim. Lia e relia um de seus livros, e alimentava passarinhos. Você pensou que eu não chegaria,, que talvez houvesse mudado de ideia e preferido ficar em casa, em vez de enfrentar o sol do meio-dia. Mas, para te encontrar uma vez mais, eu enfrentaria tempestades & temporais, turbulências & maremotos (até pediria dinheiro emprestado, que, atualmente sem emprego, estou numa situação de fazer vergonha). Sei que parece exagero, mas é verdade. gosto muito de você, e esse encontro desencontrado me deixou um pouco chateado, sim, embora não tenha admitido. A ideia de que estive tão perto de você e nem sequer pudemos nos falar, nos abraçar, sentarmos ao lado um do outro... como na escola, você lembra? Você não gostava dos meus exageros, dizia que eu era espalhafatoso demais. Mas é que, toda vez que te via, não conseguia me conter, se bem que tentasse.

Sei que ainda teremos muito tempo para novos reencontros e esbarrões casuais no meio do caminho, mas o meu defeito é a necessidade do já; quero tudo para o agora, como se o amanhã não fosse dar certo, um brinquedo quebrado, uma locomotiva que não consegue seguir nos trilhos enferrujados.



Fé na humanidade

Eu não quero nunca perder minha fé na humanidade. Todos erramos, é bem verdade, mas todos temos a chance d reparar nossos erros e fazer diferente.

O homem construiu a máquina da guerra, e com ela matou, invadiu, explodiu, conquistou. Mas também criou a máquina do abraço, e com ela matou saudades, confortou corações, enxugou lágrimas, fuzilou tristezas, esquartejou solidões... mostrou-se verdadeiramente humano.

Um só

O mar nunca acaba
porque o mar é uma coisa só
como um corpo inteiro.
O mar de Fortaleza
e o mar do Rio de Janeiro
não se diferenciam apenas por que
naquele eu me banhei em meus tempos de menino
 - e este, fiquei sabendo, mancharam com tinta negra.
É tudo uma coisa só, como Deus e o infinito,
como o resto do mundo inteiro. Se o homem divide
é porque não entende, ainda não entende.

Assim como o mar, o amor é um só.
Não há fronteiras, nem bandeiras;
portanto, não há conflito de interesses
porque todos querem um coisa só:
paz para esse mundo decadente
que respira tantos poluentes
e agoniza em dor.

O mar

Todas as vezes em que cometo o erro
de pensar que meus problemas são tão maiores
a ponto de me afogar em medo,
olho para o MAR. Sei que nada nunca será
maior que o mar, assim como nada nunca será
maior que Deus, que criou coisas tão belas
e nós, meros comedores de farinha, não agradecemos;
reclamamos, como se tudo devesse girar em nosso entorno,
senhores da arrogância, prepotência e egoísmo.
Nunca seremos como o mar: ele é fluxo contínuo,
porém está sempre ali, para quem quiser olhar.

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

O menino

O menino,
caminhando,
encontra a pedra
em seu caminho.
Joga a pedra
e segue sozinho.

O menino,
já crescido,
encontra o amor
em seu caminho: olhos castanhos
corpo esguio. Apaixona-se
e vive sorrindo.

Mascando chiclete

Desde quando éramos molecotes arruaceiros, mamãe nunca permitiu que mascássemos chiclete; que andássemos descalços ou mesmo que disséssemos algum palavrão, vá lá; mas mascar chiclete - nunca! Seu argumento infalível era que, quando mascávamos chiclete, parecíamos jumentinhos mastigando capim; além do mais, ela não suportava aquele barulhinho irritante de borracha que a mastigação produzia: nhéc, nhóc, nhéc, nhóc. Irritava-se logo e metia um safanão em  quem quer que estivesse mascando o detestavael chiclete em sua presença.

Receosos de que fôssemos pegos, mascávamos  na rua, às escondidas. Éramos onze, ao todo, e juntos formávanos uma espécie de sociedade secreta - como os Cavaleiros da Távola Redonda, só que em menor número.

Nosso segredo só era revelado com a ida ao dentista.De lanterninha em punho, ele examinhava nossa boca cutucando nossa língua com um palito de picolé(aquilo dava-nos uma sensação horrível, tínhamos ânsia de vômitar); fazia umas caretas que os médicos costumam fazer quando descobrem que algo não vai bem e sentenciava :"Este menino está com cáries". Mamãe nos lançava aquele olhar que conhecíamos tão bem
.
Depois da consulta com o dentista, morríamos de medo de voltar para casa, pois sabíamos - ah, e como sabíamos! - que a maior surra de todas as nossas vidas nos estaria aguardando.

Porém não tomávamos jeito nunca. Mal nos curávamos das pancadas e beliscões que mamãe nos dava, estávamos reunidos novamenste para mascar o bom e velho chiclete.

E aos poucos nossa sociedade foi crescendo, agregando os novos garotos que chegavaam ao bairro, de modo que nos tornamos uma organização tão complexa, que nem mesmo mamãe (ou a polícia) era capaz de frear nossos atos ilícitos.

sábado, 5 de novembro de 2011


Salve! Salve!

Quando eu era criança e ainda estava na escola, havia uma regra que nos fora imposta pelo diretor: diariamente, após o término das aulas, tínhamos de nos reunir no pátio para cantar o Hino Nacional. Aí era um problema, porque toda vez que chegávamos na parte do "Ó Pátria amada, Idolatrada, Salve! Salve!" eu caía na gargalhada. Não entendia como se podia salvar uma pátria, nem por que ela estava pedindo socorro.

Quase sempre eu era expulso daquelas ocasiiões solenes, o que até achava bom. De espírito inquieto, não parava sossegado um minuto. E por mais que meus pais fossem convocados à diretoria, eu não tomava jeito -
pelo contrário, até me tornava pior, como um modo de me vingar pelo o que tinham me causado.

Hoje compreendo que a pátria não estava pedindo socorro - não do modo como eu pensava. Hoje ela pede que a salvemos da corrupção, do descaso das autoridades, da injustiça, da impunidade, do desigualdade, da miséria.

Código secreto

Helena olhou o telefone e descobriu que tudo o que mais queria no momento era ouvi-lo tocar: três toques, era a senha. Não precisava atender. Saberia que Eduardo estava à sua espera, do outro lado da rua.

Nada, porém - e ela inquietou-se ainda mais. Algo diferente havia acontecido, algo que não estava nos planos. Eduardo sempre fora pontual em seus compromissos, ainda mais aquele; não entendia por que se atrasara. No casamento da prima fora o  primeiro convidado, chegando à igreja antes mesmo que os noivos. Foi por causa de sua pontualidade no emprego que concederam a ele a importante tarefa de abrir e fechar a loja - assim não haveriam atrasos.

Muitas vezes Helena ralhara com essa mania, o que ela chamava de "esquisitisse"; a eficiência de Eduardo era quase submissão. Ele, no entanto, nanca mudara, tornando sua mania um hábito.

Agora haviam-se passado cinco minutos desde que o telefone permanecera mudo. Helena aproximou-se da janela da sala. Procurou, procurou, procurou. Nenhum sinal de Eduardo à vista, sequer vestígios de que estivera ali. Voltou a fazer companhia ao aparelho. Minutos depois estava roendo as unhas. Nunca tivera esse hábito antes. Sua mãe era quem roía as unhas frenéticamente quando tinha o pressentimento de algo, não ela.

Preferia não pensar no pior. Não, isso não. Talvez ele apenas estivesse preso num congestionamento dentro de um túnel, onde celulares não pegavam; ou talvez estivesse numa loja qualquer... comprando flores para ela!

Por mais otimistas que fossem, nenhuma dessas hipóteses pareciam prováveis. Deus!, o que havia acontecido?

Oculto atrás de um poste, Eduardo a observava. Não tinha coragem de se mostrar ou de enviar o código que haviam criado para driblar a vigilância do pai de Helena. Seu coração havia se apaixonado por outra.

Segunda-feira

Hoje é segunda-feira e não há nada que a torne diferente da segunda-feira anterior. Às nove horas já estou desperto, porém indisposto a levantar-me da cama. Passo mais algum tempo deitado, meio que indeciso quanto ao que fazer das horas livres que terei ao longo do dia. Talvez leia um livro ou escreva alguma coisa. Talvez assista a um programa na tevê. Gosto de desenhos animados, eles me fazem rir um pouco - ao contrário dos telejornais, sempre carregados de novidades trágicas. Hoje eu não quero saber a quantas andam a guerra no Oriente Médio. Pouco me interessa saber quem matou quem a quantas facadas, ou o que será dos japoneses, depois de terem sofrido enorme tragédia. Não me leve a mal, é que prefiro estar à parte de tudo isso. Também não suporto ver meus irmãos combatendo-se em guerras, enquanto aqui estou de camarote, assistindo a tudo pela tevê.

Sei que esta segunda-feira será como as demais outras. Daqui a pouco estarei de pé, olhando minha cara enrugada no espelho do banheiro. Enquanto escovo os dentes, estarei pensando em coisas que poderia ter feito e deixei de lado; estarei pensando em meus erros, querendo voltar ao passado e consertar coisas quebradas,. Quando criança, eu mesmo consertava meus brinquedos quebrados - não ficavam tão bons quanto antes, mas voltavam a funcionar. Queria poder fazer o mesmo com as coisas da vida.

Daqui a pouco estarei tomando meu café amargo, deglutindo o pão adormecido. E meus pensamentos continuarão vagando por caminhos ermos, até que finalmente a encontrarão. Este, ultimamente, tem sido o único lugar onde posso encontrá-la novamente, abraçá-la mais uma vez; dizer que a amo e que morreria por ela, morreria para que vivesse um pouco mais feliz. Reconheço que errei - errei muito -, e a única coisa que peço é a chance de me retratar. Mas é tarde, demasiado tarde para pedir perdão. Meus erros a magoaram e agora ela se fechou em seu casulo, seu mecanismo de auto-defesa contra as coisas da vida. Seu mundo não mais me pertence. Perdi seu coração.

Já não mais tenho certeza de nada, anão ser de que hoje é segunda-feira, um dia como qualquer outro. Estou deitado em minha cama, contemplando os buracos em meu teto. Daqui a pouco vou levantar. Daqui a pouco vou tomar meu café. Talvez assista a alguma coisa na tevê, se vontade me der. Caso contrário, estarei lendo ou escrevendo alguma coisa.

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

O sorridente

Havia na nossa rua um pobre coitado que vivia a perambular pelas calçadas, sempre com um sorriso estampado no rosto. Alguns diziam que era louco - assim mesmo, no duro, sem ponderar nem refletir sobre o peso da própria palavra. Eu, no entanto, diria que ele era um privilegiado, porque a tudo recebia com aquele sorriso que não lhe abandonava, estivesse de barriga cheia ou saciado com alguma porcaria que houvesse recolhido do lixo.

Devo admitir que sentia enorme admiração por aquele rapaz. Enquanto centenas de outros anônimos lamentavam pelo emprego perdido ou pelos relacionamentos liquidados, ele sorria ante a sua miséria - ele, que tinha pleno direito de chorar, sorria como se tudo fosse plenamente perfeito.

Muitas vezes me peguei me perguntando quais seriam suas origens. Alguma vez tivera um lar para onde retornar no fim de um exaustivo dia de trabalho? Alguma vez tivera um emprego? A essa altura sua esposa talvez estivesse preocupada com o paradeiro do marido desaparecido. Já não sabia mais o que responder ao filho caçula quando este começava a fazer perguntas sobre o pai.

Aquele homem sorridente era uma incógnita - não só a mim, mas como a muitos outros também. Porém talvez  fosse eu o único a demonstrar algum interesse sadio por ele. Os demais transeuntes, quando o viam pedindo esmolas, sentado na pedra quente da calçada sob o sol do meio-dia, apenas lançavam olhares intrigados para o seu rosto sorridente e jogavam uma moedinha na lata de leite que ele erguia para o alto. Havia, é bem verdade, aqueles que passavam sem ao menos notá-lo, ou aqueles que passavam de largo, desconfidos de seu sorriso suspeito ou afetados pelo mau cheiro de suas roupas  encardidas, mas esses eram minoria. Ainda assim, era impossível simplesmente ignorá-lo e evitá-lo, pois aos que agiam dessa forma ele persseguia por um bom caminho, sacudindo sua lata com as moedinhas, até que lhe dessem a requerida esmola.

Certo dia ele aparecera na companhia de um vira-lata. Os transeuntes assustavam-se agora duas vezes: por sua aparência degradada e pelo animal que ladrava o tempo todo a troco de nada. O homem sorridente e o cachorro logo se tornaram grandes parceiros, inseparáveis. Aonde um ia, o outro acompanhava, abanando o rabo, a língua pendurada num canto da boca. Com o dinheiro das esmolas, o sorridente comprva um único sanduíche de mortadela e o compartilhava com o cachorro. Imagino que aquela meia banda de pão sequer bastava para aplacar a fome de ambos. No entanto, mesmo com os estômagos roncando, o homem sorria e o cão jamais o abandonava.

Dias depois, uma tragédia se daria, ficando estampada nas manchetes dos jornais mais importantes da cidade. Foi uma dessas manhãs chuvosas.. As ruas e as calçadas haviam alagdo. O homem sorridente procurava por seu cachorro, que tinha ido atrás de um abrigo quando tudo começara. Não o chamava pelo nome, que nome não tinha, e mesmo se tivesse, não ser ouvido no meio daquela tempestade. Então ele soltava urros animalescos para o alto, na esperança de que o cachorro o atendesse.

Horas depois, encontrou-o entalado numa boca de bueiro, o corpo encharcado já sem nenhuma vida. Tomou-o nos braços e o carregou para longe, desfilando pelas ruas enlamedas onde outrora mendigava.  Das janelas de suass casas todos puderam então presenciar a mais curiosa das cenas: um homem vestido em farrapos sorria, porém seus olhos transbordavam lágrimas.

Coisas irrevogáveis da vida

Há coisas em nossa vida que são irrevogáveis, e mesmo assim não hesitamos em arriscar um passo adiante - seja pelo prazer que isso nos dá, seja pela total falta de controle que temos sobre nossos impulsos primitivos. Saltar de para-quedas, por exemplo; é algo irrevogável, definitivo. Depois que você está no alto, com os braços abertos em meio ao azul vazio do céu, não há como voltar atrás. Saltar de para-quedas não aceita arependimentos nem devoluções.

O mesmo podemos dizer quando o caso é atravessar uma rua. Você nunca poderá atravesar a mesma rua num mesmo sentido duas vezes seguidas. Cada vez será como a primeira.
Para ilustrar melhor, digamos que o par de tracejados abaixo represente as duas extremidades de uma avenida e que o X numa de suas margens seja você:


_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _


_ _ _ _ _ _ _ _ _ __ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ 
X

A não ser que você, assim como as amebas, tivesse a capacidade de se dividir em dois, a trarefa de atravessar essa rua num mesmo sentido duas vezes seguidas seria algo impossível.
Podemos também considerar como parte irrevogável das coisas da vida o ato de embarcar num ônibus por engano. Mesmo que você tome o ônibus certo depois, isso não muda o fato de que seu percurso habitual para o trabalho, casa ou escola foi alterado; que você, mesmo sem querer, acabou fazendo um tour por algum lugar desconhecido da cidade. Em algumas ocasiões, isso até que não pode ser tão ruim, como quando uma amiga me relatou de sua aventura no interior de um ômibus que tomara achando que fosse o que costumava pegar. Ela só se deu conta de que havia cometido um engano quando o dia começou a escurecer e o ônibus não chegava ao destino desejado.
Para encerrar minha crônica, vou me arriscar afirmando que uma das coisas irrevogáveis em nossa vida é o amor. Quando você se entrega a esse sentimento, perde-se em seus muitos caminhos. Não há como desfazer os seus laços. Ele será para sempre aquele fraquejo nas pernas, um palpitar mais intenso, um pensamento meio bobo. Como diria nosso colega Luís: "é um nunca contentar-se de contente; um cuidar que ganha sem se perder." 

A máquina do amor

Ainda agorinha eu estava, como sempre costumo fazer, "zapeando" por algumas páginas da Internet, quando encontrei uma que me chamou a atenção, justamente por apresentar a seguinte manchete:


"MAQUINA DO AMOR: novidade tecnológica ainda em fase te teste."

A matéria presseguia discorrendo a respeito das mil e uma maravilhas que aquela máquina recém-criada pelos japoneses era capaz de fazer. Basava apontá-la para algum campo de batalha onde estivesse acontecendo uma guerra entre países antes aliados, e eles novamente voltavam a ser amigos; apontasse para as regiões mais miseráveis do continente africano, que tudo - fome, doença, miséria - desapareceria como passe de mágica. O grande dilema da máquina do amor era a concorrência de mercado. Ainda existiam pessoas que tinham preferência por outras máquinas: a máquina da dor, a máquina do medo, a máquina do egoísmo - e, a mais popular de todas: a máquina da desigualdade. Segundo estimativas, ainda levaria muito tempo para que o homem se familiarizasse com a máquina do amor. Muitas instituições públicas e ongs de todas as partes do planeta até que se mostravam empenhados em ministrar cursos que capacitassem o homem a lidar com a máquina do amor, seus circuitos e mecanismos internos. Porém, só aos trancos e barrancos era que ele vinha assimilando aquela novidade.

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Primeira convicção

Quando pequeno, eu era uma criatura muito magrinha, as roupas em mim sempre caindo como um saco de batatas. Quem me via na rua sentia pena, imaginando as inúmeras privações a que me submetia. Por isso, não raro eu ganhava das pessoas presentes, tais como: sapatos usados, meias que ninguém mais queria, roupas rasgadas mas que podiam ser reparadas com um ponto de costura aqui, outro acolá. Vovó era especialista em reparar  as coisas velhas que eu levava para csa. Mamãe, no entanto, não gostava da ideia que faziam de seu menino: eu não era nenhum perdido, tinha casa onde morar, cama onde dormir e mãe que me amava. Ninguém nunca duvidou disso, afinal, todos me conheciam no bairro, mas mamãe era sempre do contra.

Apesar de magrinho, eu tinha uma cabeçorra enorme. As pessoas sempre se admiravm do modo como eu conseguia equilibrá-la sobre meu pecoço fininho. Alguns até aguardavam o momento em que eu não a suportaria mais e deixariaela tombar de lado. Faziam apostas.

Na rua, a primeira coisa que se vistava era meu cabeção despontando no horizonte como uma lua cheia. Então todo mundo ria. Devo admitir que, na época, aquilo me deixava ofendido. Hoje, no entanto, reconheço que não havia como minha aproximação provocar outra reação nas pessoas.


Além das roupas e dos sapatos que nunca me cabiam, também não havia chapéu que cobrisse minha cabeça. Aí eu realmente ficava pê da vida, porque gostava mesmo de chapéus. Queria me  parecer com  o Airton, mas meu cabeção não permitia.

Certo dia perguntei para mamãe por que tinha nascido daquele jeito. Não compreendia a razão de as demais crianças serem normais, enquanto que eu tinha aquela bola de basquete em cima do pescoço. Ela nunca me respondia, não do modo como eu queria. Em invés disso, dizia que "se as coisas estavam tortas, então era assim mesmo que Deus queria que ficassem". Foi a partir desse momento que surgiu minha primeira convicção: "Deus era um cara muito mau".

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Boi, boi, boi...

Na minha infância, muitas coisas me metiam medo. O escuro, por exemplo. Só de pensar nele, já me sentia todo arrepiado.

Quanto a isso, nada de anormal, toda criança tem medo de escuro, assim como de minhocas, baratas e aranhas (até os adultos têm medo dessas coisas!). o que, definitivamente, fugia do normal era o pavor que eu tinha de bois. Toda vez que encontrava algum solto na rua, corria para me esconder debaixo da cama, onde ficava o resto do dia ou até que alguém me encontrasse.

À noite, sonhava com bois. Sonhava que estava cercado por dezenas deles: pardos, grandalhões, desajeitados. Me encaravam com uma expressão estúpida na cara, despreocupados com a vida. Nada faziam, além de mastigarem capim, mas eu sempre acordava aos berros. Mamãe acudia às pressas, tentando me tranquilizar, mas tudo que conseguia era agravar ainda mais a situação. em seu colo, ouvia sua voz doce cantarolando a canção de ninar que tanto me enchia de pavor:


Boi, boi, boi,
Boi da cara preta....

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Mundo mentido

Mundo bom
é mundo mentido.
Não precisa ser verdade
aquele menino mal vestido,
analfabeto e esmoler
pedindo um trocado ao "tio"
que não lhe vê porque o vidro
do seu Mercedes importado
é à prova de comunismo.

Pela janela

Olho pela janela
e quando penso que você
já não está tão perto assim
a ponto de um grito meu poder alcançá-la
sinto que me falta uma parte,
um dedo, um olho.
Você era essencial para mim.

Consciência de mundo

Desde menino
já me tinham dito
que o mundo era assim:
cheio de coisas estranhas pra mim.
O homem teme a morte
porque não aprendeu a valorizar o suficiente a vida.
EU: massa de carne ambulante
sobre a esfera terrestre.

Objetivo

Não quero
 com minha poesia
tocar o céu, desbravar mares.
 Quero apenas lhe despertar um sorriso,
 que isso já é o bastante.

Leve

Escrevo bobagens
 altas horas da noite
 enquanto o sono não vem.
 Mas é escrevendo coisa boba
 que leve me sinto
 tão leve que até sinto
 que posso alçar voo.

Alerta

Ia dizer
para você tomar cuidado:
o fogo queima, o espinho espeta,
o escuro faz medo
porque esconde coisas secretas.
Mas acho que você já deve saber de tudo isso.
Alguém já lhe deve ter alertado antes de mim.

Me ignore

Eu
digo coisa
com coisa
Sou doido.
Não note,
Não ligue.
Me ignore.

Hoje, ontem e amanhã

Hoje
eu te amo
mais do que ontem
e te amarei ainda mais
amanhã
se eu puder

terça-feira, 4 de outubro de 2011

Fragmentos de realidade

Tentou abraçar o mundo
mas o mundo
e suas guerras
e suas gentes
e sua fome
não deixou ser abraçado
porque o mundo que ele via na tevê
e o mundo de verdade
não podiam ser comparados:
um cabia numa caixa de plástico,
o outro jamais poderia ser pesado,
medido, equacionado
porque a dor, o riso e o céu
não se limitam a um quadro,
a um momento fragmentado
exibido como realidade.

Das coisas inúteis da vida

Para alegria ou infortúnio da Nação, criou-se o Dia da Motocicleta, afinal, é muito importante homenagear esse veículo tão barulhento e petulante. Não sei que falso poder ele confere aos motociclistas, que se acham no direito de ultrapassar os automóveis, com o risco até mesmo de lhes arrancar o retrovisor - sem falar nos inúmeros riscos que essa manobra representa, inclusive para eles mesmos. Acredito que, nas autoescolas, antes de oferecer carta branca para esses assassinos em potencial saírem matando, deveria-se oferecer certificado de boas maneiras. Sei que esse tipo de educação adquire-se em casa, mas certos lares, desestruturados como são, não oferecem estrutura para esse cuidado.

Também criou-se o Dia do Sorvete, homenagem bem merecida, pois sem ele, o que seria de nossos calorosos dias tropicais? assim como também são importantes o Dia da Pamonha, o Dia da Goma de Mascar (ou chiclete) e o Dia do Bigode.

Não tem ímpetos a criatividade humana para coisas inúteis, e isso não se limita apenas à criações de datas comemorativas; há também os inventores. Ainda um dia desses vi na televisão um sujeito que se gabava de ter criado um coçador de cabeça. O aparelho era até interessante, mas sua utilidade não compensava o preço. Ainda prefiro usar os dedos para aliviar coceiras e comichões.

Mudei de canal e me deparei com outra propaganda, essa apresentando um produto mais sofisticado, com ares futuristas: uma esteira cuja funcionalidade não era fazer correr, você subia nela e seu corpo começava a tremelicar. A explicação era que os músculos ficavam mais definidos com a tremelicagem. Só a propafganda, no entanto, não convencia - pelo contrário, causava repulsa ver toda aquela gordura tremelicando. Então, uma bela voz máscula anunciava que aquele produto já fora utilizado por estrelas de Hollywood, como Angelina Jolie e Tom Cruise. "Ligue já para o número em sua tela e peça o seu!"

Mudo novamente de canal e me deparo com uma bunda enorme sofrendo apalpada, repuxões e espremidelas por mãos que se faziam entender especialistas. Não espero para saber do que se trata. Desligo a televisão e vou ler um livro. ( Atualmente estou lendo "O Lado Ativo do Infinito", de Carlos Castañeda. Muito bom. Recomendo.)

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Em nome de nossa amizade

A última vez em que a vi fazia um calor de lascar, mas ela parecia não se incomodar com aquilo - usava óculos escuro e sobretudo pesado, mais parecia Sherlock Holmes do que minha velha melhor amiga. Perguntei se não estava sentindo calor. "Não, claro que não", respondeu ela com naturalidade. Estava bem como estava. Era hábito seu vestir-se daquela maneira, assim não poderia ser notada com anta facilidade. E de fato levei algum tempo para reconhecê-la quando a encontrei recostada à parede de um barzinho imundo, debaixo de um alpendre. Ela me estendeu um pacote, cautelosa, olhando repetidamente para os lados.Agia como se estivesse cometendo um crime.

- Faz tempo que estava guardando isto aqui para você - disse ela de maneira apressada. - Não é grande coisa, é só uma lembrancinha que comprei numa lojinha de variedades e pensei em comprá-la para você, um presente em nome de nossa amizade.

Eu não esperava grande coisa, como uma Mercedes ou um bilhete premiado da Loto Só o fato de estar ali, pertinho da minha amiga, depois de tanto tempo ausente, já bastava por tudo.

Desembrulhei o pacote ao mesmo tempo que abri meu melhor sorriso - coisa natural, não premeditada.

- Que lindo! - foi tudo o que consegui falar, antes que ela me atacasse com os braços abertos.

Nosso reencontro foi breve, mas intenso. Depois disso tivemos uma discussão e nunca mais nos vemos.


P. S - O presente era um pequeno cartão com a foto de dois filhotes de gatos abraçados um ao outro. No verso do cartão, um pequeno poema onde ela dizia o quanto era bom estar comigo e poder contar os problemas. No rodapé, uma breve dedicatória:

de Ana Paula
para Gustavo.

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Quanto tempo mais?

 Há quanto tempo Você está aqui, nem sei. Talvez milhares ou milhões de anos - quem sabe? Diante dos Teus olhos desfilaram todas as dores e alegrias da Humanidade, coisa que só vi - e mal - nos livros de história. Viste os dinossauros e os primeiros passos do homem, que carregava um pedaço de osso, e agora uma metralha. Antes lutávamos pela sobrevivência, apenas contra eventuais predadores; hoje, lutamos por estupidez, somos predadores de nós mesmos. Criamos a tecnologia para melhorar nossas vidas, mas como ela nos tem angustiado! Deixou-nos ilhados diante de nossos computadores, como escravos, presos a redes sociais, vivendo uma sub-vida imaginária, enquanto a vida real se vai e vai, como areia correndo entre os dedos, e de repente nos vemos de cabelos brancos e rugas na cara, diante da questão: "E agora, José?". Pena que não existam máquinas do tempo. Seriam úteis nesses tempos de avanço, em que a ordem é progresso! progresso!, consumir! consumir!, construir! construir!, e não se respeitam os próprios limites e os limites impostos pela Natureza, que responde a toda essa loucura com seu peremptório BASTA!! Assistam à televisão, está tudo lá: enchentes, furacões, terremotos...

Falando em televisão, lembro-me que ainda há alguns dias estava-se lamentando o 11 de Setembro, aquele atentado terrorista ao World Trade Center que abalou a História do Mundo, embora o evento tenha sido apenas local. Os americanos estavam nostálgicos e melancólicos, recordando e lamentando seus mortos, que não passam dos três mil e poucos. Daí pensei comigo: Poxa, se estavam todos tão nostálgicos, por que não cavar um pouquinho mais o tempo e lembrar que foram os Estados Unidos os maiores responsáveis pela verdadeira  maior tragédia de todos os tempos: o lançamento de bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki? Por que não cavulcar um pouco mais e lembrar que foi esse mesmo país o patrocinador da Guerra no Vietnã, evento que rendeu muito mais mortes do que um ataque ao ego americano?

Vai parecer loucura minha, mas acredito piamente que nossa vida é regida por uma lei básica universal: o que fazemos contra nosso próximo, reincide sobre nós mesmos. Portanto, acreditando nisso, é fácil entender por que aquele país tem sofrido tantos ataques terroristas e tantas crises.

Ainda custará muito para que o ser humano entenda a importância de seu próximo? Quantos inocentes mais terão que morrer, quantas guerras ainda teremos que enfrentar, para que enfim compreendamos que somos uno com o Todo, e que raça ou crença ou ideologia partidária são apenas coisas superficiais, e nada dizem sobre o Eu de cada um? Quanto tempo mais teremos que conviver com a fome, a miséria, as injustiças sociais e a corrupção com a qual, nós brasileiros, lamentavelmente estamos tão familiarizados? Quanto tempo mais?

sábado, 17 de setembro de 2011

Duas cartas

Era carnaval. O ano... Isso importa mesmo? Não, não importa. Importa que, enquanto o Rio de janeiro e as demais cidades festeiras comemoravam, enquanto as escolas de samba escolasambavam e os corpos requebravam, um sabiá-coleira morria em sua gaiola... de velhice, imaginem! A seu lado, sua dona chorava; tinha apenas nove anos. Era justo que aquelas coisas acontecessem? Ela não compreendia, assim como também não compreendia por que Deus dava tanto a uns, enquanto os que realmente precisavam morriam de fome.

Decidida, levantou-se de onde estava, foi preparar um caixão para seu amiguinho, do tamainho que lhe competia; uma caixa de sapatos serviu. Também escreveu dois bilhetes, que guardou secretamente, para que ninguém os descobrisse. Um, destinou-o a Deus. Em letras redondas, disse-Lhe que não eram justas as coisas aqui embaixo; se Ele era mesmo bom, como todo mundo dizia, que desse um jeito de acabar com as guerras, a fome, a violência... enfim, com todas as coisas que enfeiavam a Terra.
A segunda carta era destinada a Papai Noel. Nela, a menina apenas fazia um pedido: que no próximo natal lhe desse um sabiá com certificado de garantia.

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Onde vende amor

Para Michele

Dizem que amar custa caro
mas eu não sei onde vende amor;
se soubesse, iria lá,
compraria dois quilos de felicidade
e dividiria contigo.
Barganharia a felicidade
como quem barganha peixe
para que nunca mais visse
uma lágrima afogar teu riso.

domingo, 11 de setembro de 2011

Indefinido

Amor, não sei o que é
e duvido que alguém irá saber.
Ainda não inventaram dicionário
para as coisas do coração.

Ainda bem!
Porque, no dia em que eu descobrisse
o significado desse rebuliço
que me dá na barriga
toda vez que vejo minha queridinha,
isso deixaria de ser amor,
deixaria de ser magia!

O despertar

Para minha irmã 

Hoje, tudo o que desejo
é beber um pouco dessa paz,
dessa tranquilidade que emana
de uma manhã de domingo:
o orvalho desperta para o sol,
que desperta para o horizonte,
que desperta para os meus olhos,
que despertam para um novo dia
que desperta

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

Janela do mundo

Quero uma janela que dê para o mar,
todas as manhãs contemplar o retrato natural
da grandeza invejável do nascer do sol
do lado de cá do mundo, terceiro mundo,
e me render ao azul-imensidão
e mergulhar na profundidade de tudo
e viver como se cada momento fosse único
para nada perder ou mesmo ignorar.

De volta à vida



Tudo começou a partir de uma coceirinha gostosa entre os dedos do meu pé esquerdo. Achando que fosse coisa que passaria logo, não dei tanta importância ao caso. Toquei a vida como quem tocasse carro de bois.

Devo admitir que , depois de alguns dias, estava começando agostar daquela coceirinha, afinal tinha algo a que dirigir meus pensamentos. Todas as noites, ao término de uma exaustiva jornada de trabalho, atirava-me no sofá e arrancava os sapatos para aliviar a comichão que fazia festa entre meus dedos.

Numa dessas ocasiões, porém, me vi surpreendido. A pequena vermelhidão entre meus dedos havia tomado proporções assustadoras, invadindo territórios vizinhos. Como se não bastasse, também deu a latejar. Semanas depois, sequer estava conseguindo calçar um sapato.

Fui ao médico. Ele disse, com aquele ar de sabichão que só os médicos sabem fazer, que o caso era grave, muito grave.

- Vou ter que me submeter a uma cirurgia? - perguntei, já prevendo o pior.

- Não - ele respondeu assim mesmo, fria e secamente.

-Meus dedos serão amputados?

- Também não.

- Que raio vai me acontecer, afinal?

Ele me receitou uma pomada, uma reles pomada de farmácia, adquirida pela quantia exata de R$ 1,20. Fiquei fulo da vida. O que aquele doutorzinho de quinta estava pensando? Eu não estava sendo paranoico, juro por Deus!

Fui a uma mãe de santo e ela me receitou umas mandingas infalíveis. Ora, ao menos alguém me levava à sério!

As mandingas não funcionaram, e acho até que exerceu um efeito inverso, pois logo em seguida me atacou uma febre inexplicável e umas dores nas tripas. Talvez o santo não tenha ido com a minha cara, o que é naturalmente justo, pois não é de agora que ando fazendo o sinal-da-cruz toda vez que encontro um despacho no meio do caminho.

Fui à igreja. Disseram que eu estava com o demônio e que Deus iria expulsá-lo de mim. Não sei se expulsou, ou se o demônio realmente esteve em mim; o fato é que as orações de nada adiantaram.

Voltei ao hospital, na esperança de que daquela vez ficaria dias internado. Mas que nada! O mesmo médico me receitou uns xaropes e me mandou de volta pra casa.

Dias se passaram, e nada de melhoras. Já não mais acreditava em remédios ou milagres. Havia feito um trato com a morte: que ela me levasse de uma vez, e eu não me importava com o lugar para onde iria.

Porém Deus, que é sempre misericordioso, dirigiu seu olhar a esta pobre e ignóbel criatura e enviou um de seus anjos a meu leito de morte.

- Miguel? perguntei, e a mais bela de todas as vozes respondeu: "Sim!" Senti o ar estremecer.

Tudo ficou muito claro, como se o próprio Astro-Rei houvesse invadido meus aposentos. Uma súbita alegria apoderou-se de meu peito, então sorri. Estava de volta à vida.




segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Salva pelo não dito



Quando a conheci, ela estava chorando. Meu primeiro impulso fora lhe dizer alguma coisa bonita que lhe servisse de consolo. Mas nada me vinha à cabeça. Então fiquei calado, sentei-me a seu lado e envolvi seus ombros. Apertei-a o máximo que pude, até que ela parou de chorar; enxugou as lágrimas e me olhou direto nos olhos, seus olhos úmidos que eram como espelhos a refletir minha própria imagem. Tentei decifrá-los, em vão. Tudo o que consegui fora ficar ainda mais confuso.

De repente, sua voz quebrou o silêncio. Contraditoriamente, soava firme, como vinda de quem estava certo quanto ao que dizia.

Agradeceu-me por estar ali. Caso houvesse chegado segundos depois, talvez não a encontrasse mais. Estava disposta a cometer uma besteira... e por um motivo tão bobo. Agora ela sabia, porque eu estava ali. Um completo estranho havia lhe dito tudo sem dizer nada.

Levei-a para casa. Ela morava a dois quarteirões, criava gatos e passarinhos. Ri da combinação perigosa. Ela então esclareceu: não juntos.

No meio da sala, tropeçamos em alguns objetos espalhados. Ela disse que gostava de tudo assim, bagunçado, porque ficava mais fácil quando queria encontrar alguma coisa. Era avessa à arrumação, por isso não ia com tanta frequência à bibliotecas; quando tinha que fazer compras, mandava um menino em seu lugar e, em troca do favor, dava-lhe uns agrados.

Estranhei sua mania, mas não disse nada. Eu mesmo, às vezes, detesto coisas organizadas, principalmente quando estão em sequência alfabética. Mas também não sou fã de bagunça, principalmente quando se trata do meu armário. (Tenho uma mania esquisita: gosto de guardar as camisetas em ordem de tonalidades, do mais claro para o mais escuro, da esquerda para a direita. Meu pai também tinha esse hábito, portanto, acho que estou, inconscientemente, mantendo uma tradição.)

Sentei-me no sofá. Ela disse que iria preparar uma café, não demorava )"Açúcar ou adoçante?", "Açúcar, por favor."). Enquanto isso, deixou-me ouvindo algumas músicas do Tim Maia.

Estava distraído quando um objeto felpudo roçou de leve minhas pernas. Instintivamente, quase o chutei para longe - e justo no momento em que ela voltava com o café.

- Ah, vejo que também já conheceu o Bonifácio!

Tomei o gato peludo e excessivamente bonachão nos braços. Pesava tanto quanto um bebê recém-nascido.

- Acho que foi ele quem me conheceu primeiro - disse eu, acarinhando Bonifácio em meu colo. Pouco depois de nos conhecermos, o gato já se achava dono de mim, estirado sobre minhas pernas e ronronando à maneira dos felinos.

Beberiquei o meu café sem nenhuma pressa, enquanto conversava bobagens com a moça estranha que, aliás, chamava-se Cristina. Em nenhum momento me revelou o motivo que a levara a tentar suicídio, nem eu estava mais interessado nisso. Contentava-me agora em vê-la bem. Não chorava mais, e até havia se posto filosófica, dizendo coisas bonitas da vida

terça-feira, 30 de agosto de 2011

Amado Casebre

Para Michele, grande amiga, uma das poucas que ainda têm saco para ouvir minhas estórias.



Em meus tempos de moleque, nunca moramos em casa de luxo. Para ser sincero, sequer tivemos um teto que pudéssemos chamar de nosso. Estávamos sempre em constante peregrinação, ora morando de favor aqui, ora de inquilinato acolá, mas incertos quanto ao nosso paradeiro no dia seguinte. Não obstante esse pequeno detalhe, éramos felizes (ao menos nós, as crianças, embora nunca tenha visto mamãe reclamar das privações a que nos submetíamos). Lembro que sempre estávamos rindo, mesmo de barrigas vazias. As brincadeiras serviam como para enganar nossos estômagos. E essas eram muitas. Não faltavam árvores em que nos pudéssemos trepar, goiabas que pudessem escapar de nossas mão ávidas, estivessem de vez ou madurinhas, postadas em galhos baixos ou no mais alto dos galhos.

Lembro também que, de todas as casas decentes e malocas onde moramos, a de quem mais tive apreço fora um pequeno barraco que nos havia sido concedido por um amigo de meu padrasto, O terreno era amplo, mas eu via muito mais que isso; para mim, aquele era meu reino encantado particular, onde eu podia fazer minhas brincadeiras e nenhum vizinho ranheta atrapalhava. Gostava de construir casinhas de madeira, e ali tive toda liberdade para expandir minha criatividade. Minha irmã mais nova consumia-se em inveja das barraquinhas que eu construía, mais ainda porque nunca lhe permitia participar de minhas brincadeiras. Ela então chorava, esperneava, ameaçava contar tudo para mamãe, que eu não a estava deixando entrar na minha maloquinha - porém eu sempre me mantive irredutível, não querendo meninas em minhas brincadeiras. Seu último recurso era choramingar aos pés de minha mãe, que não resistia a seus apelos e acabava lhe prometendo construir uma casinha tão maior e sofisticada quanto a minha. Cumprir com tal promessas, no entanto, era muito raro, de modo que eu não me preocupava com a ameaça de concorrência.

Um dia, porém - e eu não sei o que deu nela para tomar aquela resolução - mamãe decidiu que iria dar início à construção da prometida casinha. Logo cedo começou a recolher madeiras fora de uso que ficavam espalhadas pelo quintal. De pouco em pouco, a casinha foi tomando forma e - ai meu Deus! - como ia ser grande, espaçosa, um luxo de dar inveja. Fiquei com ciumes. Mamãe nunca havia se interessado em construir uma casinha para mim e , de repente, ali estava, construindo um palacete para minha irmã. Comparado àquilo, a cabana de que tanto eu me orgulhava não passava de um casebre feio e mal construído.

Certa feita, eu quis participar de suas brincadeiras, já não tinha tantos ciumes de seu brinquedo novo e até enxergava o lado positivo de ela também possuir uma casinha: agora éramos vizinhos, e como bons vizinhos, tínhamos que viver em harmonia, como bons camaradas. Porém, quando me ofereci para entrar, ela bateu a porta e gritou lá de dentro:

- Aqui, só brincam meninas!

Sinto falta do tempo em que tão poucas coisas me atormentavam. Para me fazer feliz, bastavam meus brinquedos, algumas goiabeiras e um fundo de quintal onde eu pudesse correr livre, de pés descalços. Hoje existem as dívidas, os compromissos inadiáveis... O inferno de amar, meu Deus. O inferno de amar.

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Outra vez

* Para Carol

Outra vez senti 
aquele vazio triste 
que é sentir tua ausência.

Outra vez me peguei
distraído com tua lembrança
que de minha memória não se ausenta.

outra vez pedi aos deuses
que me dessem uma chance
de ouvir tua voz como antes.

Outra vez
feito menino bobo chorei
querendo, mesmo que por um instante,
ouví-la, sussurranre: "como amo você!" 

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Ditadura do amor

Queria que tudo fosse sempre assim,
nunca houvesse o fim,
nem o partir
e o sentir no peito
o amargor de um adeus.
Queria, outrossim,
que todos os dias fossem feriados,
que os rostos cansados irradiassem tanta luz
quanto num domingo;
e que os patrões
dessem folga a seus empregados
por tempo indeterminado.
Queria caminhar pelas ruas
e encontrar todos de braços dados,
como bobos ou abestados,
a estamparem nas caras
sorrisos arreganhados.
Que o amor fosse a única sinfonia;
nas televisões e nos rádios, a única notícia;
que fosse a única arma, o único grito
nos campos de batalhas;
que fosse a roupa que vestimos,
o sapato que calçamos,
o alimento que digerimos
o sonho que sonhamos,
a palavra que proferimos,
a ditadura nos governando
por caminhos plácidos,
mares tranquilos.
Que, nem a distância,
nem as diferenças
ou as divergências,
fossem capazes de separar
corações que verdadeiramente se amam.

Musa sem cara

O grande amor da minha vida
não tinha nome, não tinha face,
não tinha cheiro nem pele que afagasse;
Não tinha endereço, em todos os lugares morava:
nos botecos, nas esquinas;
numa rosa murcha feita marcador de página,
lá estava ela, musa sem cara...
Mas tão viva, meu Deus!
Tão viva.

Ausência

Tua ausência 
é agonia que sufoca
e cresce a cada dia; esmaga, oprime, corrói
o pouco que ainda me resta de sensatez.
Não vejo a hora em que tudo isso acabe.
Espero ansiosamente o momento em que estaremos
juntos definitivamente,
e nada, nem distância ou ressentimentos
poderá nos afastar;
onde a vida, no seu mais sublime aspecto,
não comporta falhas nem rachaduras,
onde o amor é indefectível,
imortal.

Imortal

Imortal é o amor
que nasceu com o raiar do dia
e, como árvore, foi enterrando suas raízes
em corações apaixonados.
Imortal é a paz que nos envolve
quando perdoamos ofenças e mágoas,
é a sensação de plenitude que nos afaga
quando não temos dores ou chagas a sofrer,
culpas ou pecados a expurgar.
Imortal é a alegria que nos domina
ao termos convicção de que nada é tão poderoso
quanto um abraço amigo, uma palavra de consolo
em momentos que nos sentimos abatidos.
Imortal é saber
que sempre teremos ao nosso lado
alguém que nos ame,
mesmo em noites sombrias,
jamais estaremos sozinhos.
O resto não é mais que efemeridade.

sábado, 6 de agosto de 2011

A tempestade

Era tarde da noite e chovia torrencialmente quando ela me ligou. A princípio, achei que fosse algo urgente, mas era da chuva que ela tinha medo. As gotas gotejando em seu teto feito metralhadora ameaçavam levá-lo abaixo. Pedi que se tranquilizasse. Não adiantou. Ela queria porque queria que eu fosse até  sua casa dar um jeito naquilo.
Eu não estava disposto a levantar da cama e encarar a noite gélida que me aguardava lá fora. Sem meias palavras, disse-lhe que não podia. Ela entrou de vez em pânico. Então iria deixá-la morrer sob os escombros do teto de seu quarto?
 - Pelo amor de Deus, mulher! Nada vai acontecer.
Mas eu não estava lá para ver. As gotas eram como soldados marchando compassadamente: poc, poc poc. O teto gemia como se dissesse "não posso mais!". Uma tragédia iria acontecer, se eu não aparecesse logo, iria! No dia seguinte a TV e os jornais impressos estariam repletos com a trágica notícia de sua morte.
Bem antes disso, porém, a tempestade havia cessado, tão súbita quanto surgira. Ficamos ao telefone - eu aqui, aliviado por não precisar abandonar minha cama; ela, do outro lado, aliviada de não estar morta.

sexta-feira, 29 de julho de 2011

Família feliz

 

Quando a tv lá de casa quebrou, foi um Deus nos acuda para minha irmã. O que ela faria da vida sem suas novelas? Meu padrasto também ficou em situação desesperadora: uma semana sem assistir aos filmes policiais de que tanto gostava parecia o fim do mundo. Mamãe não externou sua indignação, mas eu sabia que, no fundo, no fundo, a tv também lhe fazia enorme falta.

Devo admitir que nossa velha companheira não me fez nenhuma falta (não tenho hábito de assistir televisão, prefiro me distrair com meus livros e meus escritos - a programação água com açúcar da TV brasileira também não contribuindo muito para ganhar minha simpatia). Portanto, fui o único a não ficas largado pelos cantos da casa, abandonado ao tédio. Minha irmã, ao contrário, trancou-se por dias no quarto. Meu padrasto procurava chegar mais tarde do trabalho e mamãe tornou-se mais religiosa, passando a maior parte do seu tempo na igreja. Os raros momentos em que nos reuníamos resumia-se aos horários destinados às refeições, e mesmo assim não nos comunicávamos - sequer olhávamos para cara um do outro. O maior diálogo que mantínhamos era: "Me passa a manteiga?", ou então " Onde você guardou o pote de biscoitos?"

Um dia sugeri que escolhessem um dos meus livros para lerem nos momentos de ócio. Mamãe fez cara feia, a única coisa que lia era o Livro Sagrado - mais nada. Meu padrasto alegou que estaria tão consumido pelo trabalho, que não teria disposição para nada, só mesmo para descansar. Minha irmã foi a única que tocou no meu livro, porém nunca soube se de fato o lera.

Quando dias depois a tv finalmente voltara do conserto, foi uma alegria - eu diria até que nossa vida voltou à normalidade. Minha mãe agora sorria, como antes; minha irmã não reclamava mais tanto da vida, do quanto era tediosa; e meu padrasto retomou sua rotina normal de trabalho, voltando para casa nos horários habituais. Em outras palavras, éramos novamente uma família feliz.

segunda-feira, 25 de julho de 2011

A perdição dos homens

A perdição dos homens
não são as mulheres, nem o dinheiro,
fama, sedução, drogas ou riquezas,
a condenação eterna no mais profundo abismo.
A perdição dos homens
não é ter morrido sem a chence do arrependimento,
hipocrisia usada como borracha para os erros
- é ter vivido
e nunca ter gozado plenamente
a vida e a felicidade.

Sem redenção

Amanhecer e não te ver ao meu lado,
tão distante de mim que ficou,
é como acordar e não ver a alvorada,
entardecer e não ter o sol a se pôr.
É como ouvir música sem melodia,
pular carnaval sem folia,
andar na chuva e não se molhar
nem pegar um refriado.
É como querer alçar voo
e não ter imaginação;
querer ganhar o mundo
e não ter ambição.
É como morrer
e ainda assim viver
sem redenção.

Solidão

Então é isto a solidão,
esse vazio,
esse oco,
esse vácuo,
esse querer te ver,
te tocar
te sentir,
escutar a sua voz familiar
dando-me uma bronca
por não ter ido ao mercado
quando me pedira?
Ou será a impossibilidade
de recuperar o que foi perdido,
de voltar no tempo
e desfazer o que estava consumado?

Constatação

Já é tarde, eu sei.
Deveria me recolher
e me conformar,
Mas não faço
e me revolto
e me indgno
e me exaspero,
porque há um minuto você estava aqui
e deixei que escapasse entre meus dedos.

Arrependimento

Se você tivesse ficado
ainda mais um dia
eu teria consertado tudo,
teria te amado
como você merecia.
Mas fui um tolo.
Peço perdão
e me calo.

Sem ela

Sem ela não há céus,
não há sóis,
não há primaveras
nem carnavais.
Sem ela, 
nem mesmo há temporais,
dias sombrios de noites prolongadas
e madrugadas eternas.
O que resta, sem ela?
Esse vazio abissal,
esse oco,
esse buraco que atravessa o mundo,
transpassa os infernos
e vai pousar em terras orientais;
a lembrança resgatada
em cada som, cada ruído, cada objeto,
cada verso de poesia.

Página solta

Minha vida
é como página solta no vento:
pode ir para frente, pode ir para trás,
pode seguir por ermos caminhos,
pode perder-se para nunca mais.

Imagem na tv

Ainda há pouco
liguei minha televisão
e uma triste cena
me comoveu o coração:
homens digladiando-se
em campos de batalhas,
cavando suas sepulturas,
cerzindo suas mortalhas.
Meu coração chora
em ver a triste cena.
Peço a Deus que, sem demora,
nos absolva dessa pena

quinta-feira, 14 de julho de 2011

Líquido mágico

Na minha vida, só recentemente o livro veio assumir posição de destaque. Quando eu era moleque, estava ocupado demais, jogando bola, tomando banho de riacho, catando caranguejo - não me sobrava um minuto sequer para o livro.
Na escola, me tentaram meter o livro de qualquer jeito - apresentaram-me livros coloridos, abarrotados de figurinhas coloridas e só aqui ou acolá uma frase solta ("O sol é amarelo") - , mas eu não me emendava. Mal chegava em casa, jogava o livro para debaixo da cama e corria para a rua.
Só aos doze anos cheguei a me interessar pela leitura. Bem antes disso, porém, a ânsia pelo saber já havia aflorado em meu espírito. Dei a fazer perguntas sem parar, torrando a paciência de meus pais que, sem outra alternativa, findavam me dando uns petelecos. Queria saber por que o sol era quente, por que a nossa cachorra não podia falar como gente, por que o vento soprava, por que anoitecia, por que a água do mar era salgada, se a chuva que caía era doce. Por quê? Por quê? Por quê? Inúmeras perguntas. Para algumas delas, encontrei respostas em livros; outras, permanecem comigo como um desafio ao tempo e uma prova de que, por mais que cresçamos, jamais seremos capazes de aprender tudo.
O meu maior sonho, então, era ser cientista. Desde quando ouvira falar de Albert Einstein, me apaixonara pela Ciência. Aquele homem esquisito de cabelo desgrenhado e língua de fora exercia enorme influência sobre mim. Queria ser como ele, inteligente, engraçado.
O livro que mudaria para sempre minha vida chamava-se "O Rapto do Líquido Mágico". Contava a história de um menino inventor que criara um líquido mágico capaz de colorir todas as coisas. Fiquei encantadíssimo ao terminar aquela leitura (o primeiro livro que havia lido até a  última página). Dei também a inventar coisas. geralmente mistura de água, terra e sabão que eu chamava de "líquido mágico" Saí por aí borrifando meu líquido mágico pelos cantos. Acreditava que ele tinha o poder de deixar tudo mais colorido.
Naquela época, minha irmã vivia cheia de vermes, de modo que sua pele tinha uma constante aparência amarelada e seus olhos eram como os de peixe morto. Apiedei-me dela. Ela precisva de um pouco mais de cor. E lá fui eu realizar meu intento humanitário. Esborrifei meu líquido mágico na cara dela. Aos berros, ela foi contar tudo para mamãe. Levei a maior surra de toda a minha vida.
Houve, entre os meus quatorze e dezoito anos, um curto período em que me afastei da leitura - mas não sem motivo justificável: agora, não mais o futebol nem os banhos de riacho, mas as namoradinhas que ocupavam, a bem dizer, todo o meu tempo disponível, toda a minha vida. Não tinha cabeça para mais nada, nem mesmo para os estudos, de modo que acabei repetindo alguns anos.
Época de inconstância emocional, me apaixonei e me decepcionei por inúmeras garotas. Na verdade, qualquer uma que aparecesse diante de mim despertava minhas fantasias apixonadas. Não precisava me dar bola, bastava passar na minha rua e eu ficava imaginando que éramos amantes, que um dia estaríamos passeando de mãos dadas por aquelas calçadas.
O amor pelos livros só voltou quando vim morar em Fortaleza e arranjei um emprego (meu primeiro emprego) como agente de leitura numa biblioteca comunitária. Passei a viver cercado de livros dos mais variados tipos e autores. Entre eles, reencontrei o livro de minha infância. Não tenho vergonha de admitir que chorei ao reencontrá-lo uma segunda vez, depos de tanto tempo.
Cresci e a paixão pela leitura nunca mais me abandonou. Hoje, procuro seguir os passos daqueles que me serviram de inspiração. E, com meus passos cambaleantes - ora tropeçando aqui, ora acolá -, vou seguindo por caminho tortuoso, certo de que as coisas, um dia, acharão o seu lugar.

À espera de um milagre

Ele não era um menino rico. Nunca tivera brinquedo caro nem nunca morara em casa de luxo. Contentava-se com  três refeições diárias - às vezes, nem isso. Quando podia, ajudava a mãe nas tarefas de casa. Ela, mesmo doente, procurava sempre dispensar a ajuda do filho, pois queria-o na escola, tinha esperanças de transformá-lo em doutor. No entanto, recebia como bem-vinda a contribuição do menino quando a dor de cabeça lhe era insuportável. Fora ao médico algumas vezes. Da última, voltara com o coração pesado: um tumor maligno havia se alojado em seu cérebro, numa região onde não podia ser operado. Poucos dias de vida lhe restavam.
Seus olhos enchiam-se de lágrimas ao pensar nisso. Seu filho, o que seria dele, sozinho neste mundo? Como ia tocar a vida? Temia que, sem perspectivas, partisse para o caminho do mal. Era o que geralmente acontecia. Os noticiários sempre estavam anunciando mortes de adolescentes que se envolviam no mundo da criminalidade.
Ao mesmo tempo que pressentia o fim, seu corpo fraquejando lentamente, rezava a Deus, todos os dias, para que algo acontecesse - uma cura milagrosa, talvez, por parte dEle ou da medicina.
 Mas não aconteceu. Três meses depois, numa cama de hospital e em estado irreconhecível, havia morrido silenciosamente. Seu filho, ao lado, apertava-lhe a mão, como se, numa tentativa inconsciente, quisesse agarrar seu espírito, que voou como borboleta arrastada pelo vento.
Ele seria um bom menino, prometia. Faria de tudo para vencer na vida e dar aos filhos o que ele mesmo nunca pudera ter. Frequentaria a escola mais assíduamente. Formaria-se doutor, como a mãe tanto quisera.

terça-feira, 12 de julho de 2011

Ser bailarina



Desde pequena seu maior sonho era ser bailarina, e já cedo ensaiava seus primeiros passos. Rodopiava, rodopiava, rodopiava; no meio da sala, no jardim ou mesmo trancada em seu quarto. A mãe advertia que ela pudesse se machucar, ficar tonta e cair no chão, mas a menina não dava ouvidos - não que fosse uma filha desobediente, mas por tudo aquilo fugir de seu controle. Não raro, imaginava-se num salão luxuoso, cercada de pessoas bem vestidas, para quem dançava e era calorosamente aplaudida. Outras vezes, via-se num importante evento de gala, sendo premiada como a maior bailarina de todos os tempos; a mãe também estava lá, e era quem mais ovacionava. Na escola, muitas vezes fora chamada à atenção, pois distraía-se facilamente, deixando de lado a aula para desenhar nas margens de seu caderno pequenas bailarinas rodopiantes. "Um dia vou ser gente grande", pensava ela, emburrada por ter sido tirada de seu devaneio tão abruptamente, "e não vou mais ter que vir à escola. Vou ganhar dinheiro, ser famosa e muito feliz."

Os anos foram passando. Veio a adolescência, as primeiras espinhas e as incomodantes cólicas menstruais. As bonecas foram substituídas por um primeiro namorado e os livros de fadas, por romances melosos de finais previsíveis; orgulhava-se de possuir em sua prateleira a coleção completa da saga de vampiros criada por Stephanie Meyer, sensação entre as garotas de sua idade.

Outros sonhos vieram e se foram com as águas turbulentas em que sua vida havia se transformado. Quanto ao seu sonho de menina, ela nunca chegou a ser bailarina nem entrara para uma escola de balé, mas ainda guardava os muitos desenhos e rabiscos que fizera em seus tempos de infância.

sábado, 9 de julho de 2011

Abracadabra

Ele precisava estudar, as provas começariam no dia seguinte e ele nada sabia além do pouco que lembrava das aulas de biologia: gene, DNA, mutação - apenas palavras soltas que não lhe serviriam para muita coisa. Mas o livro enorme o desanimava; sentia um bocejo se aproximando só em pensar na quantidade de páginas que teria de ler. Por que as coisass tinham que ser tão complicadas quando o que ele mais queria era justamente uma fórmula para descomplicá-las? Se magia existisse, tudo seria resolvido com um simples  abracadabra."Abracadabra!" - e a escola desapareceria para sempre. "Abracadabra!" - e as provas não seriam mais necessárias. "Abracadabra!" - e todo dia seria dia de algum santo, assim nunca mais haveria aula. Mas ali estava o livro detestado, a sua cama, o seu quarto. "Abracadabra!" - e o menino adormeceu com a cara entre as páginas.

O móvel estranho

Sempre desconfiei que meus vizinhos escondessem um segredo comprometedor. Estavam sempre de cortinas cerradas, mal saíam durante o dia e quando saíam era algo tão repentino que minutos depois você ficava se perguntando se aquilo de fato acontecera ou se fora obra de sua imaginação. Talvez fossem foragidos da polícia, vivendo sob identidades falsas, ou terroristas que planejavam um ataque em larga prorporção - era difícil saber. Pelo sim ou pelo não, ali estava uma coisa que deveria ser investigada.
Passei dias trepado na goiabeira do meu quintal, lugar estratégico de onde eu podia ver toda a movimentação da casa vizinha. Porém nada mais suspeito do que eu já suspeitava acontecera. O dia deles era monótono, tanto que uma hora acabei entediado e desci da árvore. Mas foi justamente quando algo aconteceu. Voltei para o meu posto de observação e agucei todos os sentidos. Um som estranho vinha de uma das janelas da casa. Parecia ser de uma canção, mas não daquelas tocadas em rádio; era mais viva e mais bonita, como se possuísse alma prórpia. Tentei me aproximar um pouco mais, escalando os galhos mais altos, até que a árvore não aguentou o peso excedente e juntos fomos ao chão. Quando me recompus, estava no terreno vizinho. Entrei em pânico. A música havia sido bruscamente interrompida minutos depois de me encontrar naquela situação; alguém havia notado minha presença. Corri de um lado para o outro feito barata desnorteada, não encontrando moita ou montinho de terra onde pudesse me refugiar. Decidi me render quando abriram a porta dos fundos e me flagraram. Uma bela mulher  sorriu e perguntou meu nome. "Eugênio", menti descaradamente. Num instante ela ficou séria, como se houvesse desmascarado a mentira, mas pouco depois voltou a sorrir e me convidou para entrar. Havia preparado alguns docinhos.
Levei algum tempo até decidir o que faria: se permanecia onde estava, parado, feito uma estátua ridícula, ou se a seguia. Não fora exatamente daquela forma que João e Maria haviam sido enganados pela Bruxa? Mas aquele não era um conto de carochinhas -  era a vida real, palpável, lúcida, vivível - e na vida real  poucas coisas eram possíveis. Você poderia ser atropelado por um carro ou mesmo ser vítima de um atentado, mas nunca seria devorado por uma bruxa ou enfeitiçado por alguns docinhos encantados. Se ainda me restava alguma dúvida a respeito do caráter daquela moça, essa dúvida foi totalmente dissipada pelo irresirtível aroma de bolo fresquinho que vinha da cozinha.
Fui conduzido casa adentro, cômodo após cômodo, pela mão fria da moça que me prendia pelo braço. Vendo de perto os móveis (quase podendo tocá-los de tão próximos, não fosse o receio de quebrá-los) eles agora me pareciam menos suspeitos; não passavam de móveis comuns, muitos até bem parecidos com os de casa. Mas ao passar pela sala de visitas, um móvel estranho me deteve a atenção, fazendo-me estacar a poucos metros dele. A moça sorriu gentilmente e perguntou se ainda queria os biscoitos. Diante do meu silêncio ela se dirigiu ao móvel e sentou-se numa banqueta atrás dele. Em poucos minutos começou a arrancar de suas entranhas sons tão harmoniosos que por um instante imaginei estar no paraíso e  que a moça fosse uma fada, não mais a bruxa que eu temia. As mesmas notas que me atraíram até ali agora juntavam-se  formando uma melodia que emanava do móvel estranho e propagava-se por todo o ambiente, como uma fonte de prazer. Sentei-me no chão e fechei os olhos para absorver melhor toda aquela maré de êxtase. Era o que fazia quando queria tornar  minha alguma coisa nova. Imaginava que era o dono daquilo e desfilava na rua, pomposo, só para fazer inveja à molecada.
Mas de súbito a música cessou, como um sopro interrompido, e tive de abrir os olhos novamente. Mergulhada no silêncio, a casa voltou a assumir sua antiga forma de mistério. Senti as mãos delicadas e frias da moça tocarem meus pulsos. Ela havia sentado-se diante de mim, no assoalho. Seus olhos lustrosos fitavam os meus. Pude então perceber que havia chorado... e muito, tanto que a ponta de seu nariz estava vermelha. Após um longo silêncio de intensa contemplação, enfim ela me confessou com um ar pesaroso que partiria em breve, nunca mais voltaria.Se quisesse, eu poderia ficar com o piano. Ela o deixaria como um presente para mim.        
Em algum lugar da minha consciência  eu sabia o quanto de eternidade carregavam as palavras "nunca mais"; era muito pior que um mero adeus ou um "até logo". Porém estava tão absorto com o eco da canção ricocheteando nas paredes da minha memória que não pude me dar conta da gravidade de tudo aquilo.
Passei dias aéreo, reproduzindo monótonamente a velha canção em minha cabeça. Quando voltei à realidade, meus vizinhos haviam partido. Conforme  prometido, a moça deixara o móvel estranho. Solitário no meio da sala, mais parecia um objeto fantasmagórico. Nunca mais ouviria fluir música de suas entranhas, e nunca mais eram palavras que carregavam em si um tempo que não podia ser cronometrado. Levou anos até que eu esquecesse tudo e voltasse a ter uma vida normal.

O último encontro

A noite estava majestosa quando Eliete desceu as escadas apressada, pulando dois degraus de uma só vez. Seu coração palpitava de felicidade mais do que de exaustão; na verdade, mal notava o esforço que fazia para alcançar o andar inferior antes que a campanhia cessasse de tocar. Abriu a porta e quase em seguida saltou no pescoço de seu amado. Ele recendia a sabonete masculino. Ainda não notara o arranjo de flores que ele lhe trazia às costas. Gustavo tinha muito dessas delicadezas. A cada novo encontro ele a surpreendia com algum agrado: uma caixa de bombons, uma única rosa vermelha que exalava por semanas um perfume memorável ou uma revista de modas que ela ainda não havia encontrado. Se perguntasse: "Como conseguiu?", ele fazia um ar de misttério e desconversava. Se insistia, abraçava-lhe e beijava como se aquilo bastasse para aplacar sua curiosidade. Quase sempre o último recurso funcionava.
Daquela vez Gustavo lhe trazia um buquê de tulipas. Porém o que mais surpreendia era o modo como estava vestido: impecavelmente. Eliete não fez perguntas, apenas tomou-lhe o braço quando este lhe foi oferecido e ambos saíram para o passeio habitual.
As ruas turbulentas não impediram que aquele fosse um momento mágico. As luzes, as buzinas, o dióxido de carbono e os xingammentos - nada existia, apenas Gustavo e seu perfume de sabonete masculino.
Foram para um dos poucos recantos sossegados que a civilização poupara de seus apartamentos e outdoors. A estrada por onde seguiam ainda era de terra batida, porém a prefeitura já tinha seus planos sobre ela e logo ela estaria movimentada por um intenso trânsito.
No alto de uma colina estacaram. Ao redor outros casais de namorados riam baixinho. Sentaram sobre a grama úmida. Adiante a lua pairava, majestosa, num mar salpicado de pontinhos brilhantes. Ali estava a estrela que escolheram para si, maior e mais brilhante. Tinham plena consciência de que centenas de outros casais já haviam adotado a mesma estrela, mas aquilo pouco importava. O mundo era de todos e ninguém ficava ofendido em compartilhar do mesmo oxigênio no interior de um ônibus lotado ou de um elevador.
Naquela noite Gustavo estava mais retraído que de costume, apenas admirando a tudo numa contemplção muda, quase doentia, o cigarro na ponta dos dedos já quase de todo consumido. Atirou-o na grama quando sentiu o pequeno ponto de brasa aitngir seus dedos. Então acendeu outro, deu uma tragada e deixou que o restante se consumisse por si só.
Eliete sorriu e pediu um cigarro.
- Desde quando a senhorita fuma?
- Desde agora.
- Seus pais sabem disso?
- Tô pouco me lixando pra eles.
Deu uma primeira tragada e quase não conseguiu conter o acesso de tosse. Gustavo explodiu em gargalhadas, mas logo procurou socorrer a namorada. Tomando o cigarro de sua mão, deu uma tragada como para mostrar o jeito certo de fazer.
- Ora, não sou mais criança!, protestou Eliete.
Gustavo ofereceu-lhe novamente o cigarro. Ela recusou.
Momentos depois o silêncio reinava outra vez. Eliete pôde notar uma pequena ruga entre as sobrancelhas de Gustavo. Arriscou-se perguntar o que acontecia.
- Nada, ele respondeu.
- Ninguém fica com essa cara à toa.
-Aí é que está. De pouco em pouco as pessoas vão abandondo suas identidades e adotando um padrão comum de comportamento. Existe o jeito certo de estar preocupado, de estar triste ou de estar alegre. Eu não sou assim. Tenho um jeito só meu para cada coisa, e garanto que neste exato momentto não estou triste, nem preocupado ou com fome. Simplesmente estou sendo eu.
Eliete achou por bem não chateá-lo com mais perguntas. Fingiu acreditar no que ele dissera. A verdade era que alguma coisa estava acontecendo sim, porém ele não iria abrir-se nem ela iria forçá-lo.
Ficou sabendo no dia seguinte que há semanas ele estava de malas prontas para uma viagem de intercânbio ao exterior, só aguardando a data marcada. Sentira-se exasperada por ele ter-se mantido sigiloso todo o tempo. Por acaso não a amava? Era evidente que não, do contrário sequer teria viajado, mesmo que para cuidar do próprio futturo.
Enfurecida, tratou de jogar fora todos os presentes que em dois anos fora recebendo diariamente.Não queria nada em seu quarto que fizesse lembrar Gustavo. Porém nunca esquecera o perfume nauseante que dele recendia na noite do último encontro. Tinha ímpettos de incendiar todo o supermerrcado quando saía para fazer compras com a mãe e lá encontrava uma prateleira repleta com o mesmo sabonete.

Por uma boa causa

Mariana desconfiava que o namorado a estivesse traindo. De uns dias para cá, havia-o notado cada vez mais atencioso, mandando-lhe flores diariamente, acompanhadas de bilhetinhos apaixonados. Só podia estar enrolado com alguma outra e agora remoía-se de culpa! Mas se pensava que iria enganá-la com alguns agradinhos bobos - ah, mas estava muito enganado!
Mariana decidiu que deveria investigar mais a fundo a vida do namorado, seus antecedentes e qualquer outra coisa que pudesse incriminá-lo. Ia regularmente ao seu trabalho, a pretexto de matar saudades, e enchia-lhe de perguntas: A que horas voltaria para casa? O que faria depois do expediente? Por que não aproveitavam para darem um passeio? A noite prometia ser agradável.
Agora era Reginaldo quem estranhava: sua namorada estava ficando louca! O que faria agora para palacar aquela mulher? Dava desculpas. Não podia sair a passeios, estava exaurido pelo trabalho. Deixassem para o final-de-semana, então poderiam pegar um cinema.
Mariana não compreendia. O namorado nunca se recusara a nada antes, e só então vinha com aquelas esquisitices, alegando indisposição que nunca tivera. Antigamente, estavam sempre em concordância com tudo, e agora aquela dissensão. O namorado tinha outra. Sim, a outra estava roubando todo o tempo que era seu.
Um dia resolvera meter Reginaldo contra a parede, exigindo que confessasse sua culpabilidade.
O namorado esquivou-se o quanto pôde, mas no final acabou entregando os pontos: tinha sim uma namorada, e ela se chamava Beatriz.
Porém aquilo não bastava. Mariana queria mais, queria saber onde a rapariga morava, qual o número de seu telefone.
Reginalndo mentira sobre tudo, desde o início, afirmando que tinha uma amante. Dera um endereço qualquer para Mariana e um número de telefone inexistente. Mentira por uma boa causa. Ao menos a namorada agora estava satisfeita.

Livros e solidão



Era uma tarde de quarta-feira e, como de costume, eu me entregava aos prezeres de uma boa leitura, desfrutando da calorosa companhia de meu querido Fran Martins. Inesperadamente, entrou na biblioteca uma senhora de meia-idade e ficou rondando as prateleiras. Não liguei atenção à sua pessoa, de modo que não posso precisar ao certo se a mulher usava calça jeans ou se seu cabelo estava desgrenhado - essas fuilidades que geralmente nos prende a atenção quando não temos nada mais importante para fazer do que ficar reparando nos outros. Eu tinha muito o que fazer, portanto o que acontecia ao meu redor pouco importava; acredito até que, se caísse um aeroplano sobre aquela biblioteca, eu morreria agarrado ao livro do Fran Martins e iria para o céu tranquilo, se Deus me permitisse levá-lo comigo. Caso me negasse, eu daria meia-volta e aceitaria o inferno de bom grado, desde que me reservassem um cantinho para ler o autor querido. ( Sim, já me disseram que minha paixão pelo Fran é doentia. Bom, eu não ligo. Esse é um câncer que gostaria de levar comigo ao túmulo.)
A mulher ainda rondou as prateleiras por um longo período de tempo. Via-se que tinha gostos literários refinados, pois vasculhava as lombadas da ala reservada aos clássicos. Retirando um grosso volume, finalmente foi-se sentar na cadeira diante de mim, porém não o lera. A mulher ficou me encarando por um bom tempo, até que me fez uma pergunda indiscreta. Queria saber se eu era casado. "Não", respondi. Não era casado. Voltei à minha leitura, achando que enfim havia aplacado a curiosidade da mulher. Porém estava enganado. Logo em seguida ela me flechou com outra pergunta, direta, sem rodeios. Queria saber se eu tinha namorada. Não, também não tinha namorada.
"Que pena!", disse ela então. "Um rapaz tão moço..."
Eu não lhe tinha revelado minha idade, porém não era preciso possuir uma bola de cristal para se chegar a uma conclusão tão óbvia. Estava tudo na minha cara... ou nos meus olhos, para ser poético, embora eu nunca tenha sido capaz de revelar a idade de alguém apenas olhando-o nos olhos.
"Mas era de se desconfiar", continuou a mulher, não dando vez para que o assunto morresse. "Gente que vive metida com a cara nos livros é sempre solitária."
Meu dia, que até então estava indo bem, de repente ficou nublado. Quem aquela fulana estava pensando que era para falar comigo daquela maneira? Não tive cabeça para mais nada. Retirei-me da sala, carregando debaixo do braço o Fancisco.
Em casa, não tive apetite para o jantar. Tranquei-me no quarto e fiquei pensando no que a estranha me dissera ainda mais cedo: "Gente que vive metida com a cara nos livros é sempre solitária..." Que absurdo! A mulher não fazia ideia do que estava falando. Provavelmente estava bêbada ou era mais uma daquelas ignorantonas que se achavam donas de todo o conhecimento e de toda a verdade.
"Que absurdo!...", pensei comigo, e fui ao armário onde havia guardado o livro de Fran Martins, "Mar Oceano". Lancei-me na cama e retomei a leitura de onde a havia interrompido. No quarto silencioso, reinavam a paz, a noite e a solidão.

Um cara bacana

Na minha memória a imagem de meu avô materno sempre se conservou como um fantasma, uma sombra a bem dizer indistinguível num passado nebuloso. Nunca o cheguei a conhecer pessoalmente. Por uma tragédia do destino, vovô partiu-se desta vida antes que eu viesse a descobri-la. Todas as informações que tenho dele, portanto, são apenas relatos - e dos mais sombrios.

Por mamãe eu soube que ele era um bêbado. Poucas eram as vezes em que estava sóbrio para fazer um carinho na filha. No entanto, era de minha mãe que ele mais gostava. Quando estava doente e precisava de ajuda com os remédios, era a ela que ele procurava. Com sua maneira ríspida de tratar as pessoas, mandava que ela fosse à farmácia ou ao mercadinho de seu Carlito - e que segurasse bem firme o dinheiro, do contrário levaria uma surra que nunca mais esqueceria. Mamãe então apertava tão firme as moedinhas que vovô lhe confiava, que depois não conseguia mais libertar os dedos. (Certa feita, ao atravessar a rua, um carro surgido não se sabe de onde atropelou mamãe, jogando para longe seu corpinho magricela. Vovô, que acompanhava tudo da varanda de casa, prontamente acudiu a filha, mas para constar se ainda guardava o dinheiro que lhe confiara. Milagrosamente, mamãe apertava as moedinhas na palma da mão direita.)

Da parte de minha avó eu soube que ele era um brigão. Às vezes, quando estava bêbado, batia nela.
Uma das coisas que mais detestava era "o povo da igreja". Esse ele queria ver de longe, assim como o diabo quer ver distância da cruz. Vovó até que tinha esperanças de converter ele, mas o coitado morreu antes que pudesse ajeitar a vida. Mamãe acredita que agora ele esteja no Inferno, jogando baralho com o Satanás.
Como eu disse anteriormente, não cheguei a conhecer vovô pessoalmente. Mas, se o tivesse conhecido, não o julgaria assim, tão precipitadamente. Talvez houvesse existido alguma coisa boa dentro dele, é que ninguém se importou em procurar. Talvez mesmo ele fosse um cara bacana.

Como passe de mágica

Fico pensando comigo, pensando, pensando... Como seria maravilhoso se tudo o que desejássemos, pudéssemos ter em mãos - como num passe de mágica. Todas as coisas tristes desapareceriam do mundo. Não haveriam mais guerras, nem mortes ou assaltos. As pessoas seriam mais gentis consigo mesmas e com a natureza, aprenderiam a preservar as coisas boas da vida. Deus ficaria feliz  com todo mundo e faria chover purpurina.
Queria eu poder, com um simples estalar de dedos, tornar todas as coisas possíveis. Faria mamãe parar de pegar tanto no meu pé: menino, não faz isso! menino, não faz aquilo! Olha a chuva, manino! Vai pegar um resfriado! Também faria algumas coisas desaparecerem - como o dever de casa, por exemplo. Agora ele está ali, sobre a mesa, olhado para mim com cara feia. Fique sabendo que não tenho medo de cara feia não, viu? Mostro minha língua para ele. Sei que mamãe reprovaria essa atitude. Ela diz que isso é coisa de menino sem educação; menino direito não faz coisas como mostrar a língua, erguer o dedo do meio ou dizer palavrões. Bem, mas ela não está aqui para saber o que fiz.
Mal acabo de pensar nela e já ouço sua voz, vinda de algum distante lugar. Está dando uns carões em minha irmã. Mamãe vive fazendo isso, dando carões nas pessoas (mesmo nos adultos), é quase um hábito seu. Ela nunca vai se conformar com o namoro da filha. Mas não pode fazer nada além de gritar, como está fazendo agora. Sua voz é esganiçada. Tenho pena de minha irmã. Mas, por um lado, admiro-a. Não é qualquer um que teria fibra para aguentar tanto desaforo calado, isso é demais até para um filho. Eu já teria me alterado e feito alguma besteira.
Ouço passos se aproximando. Sei que é mamãe, pois ela tem uma cadência única em seu caminhar, batendo firmemente os calcanhares no chão, acho que para melhor intimidar.
Intimidar... Essa é a sua técnica para tudo. Às vezes, confundo-a com um general. Em casa, sinto-me numa base militar. Suas ordens devem ser obedecidas à risca, do contrário...
Sinto sua presença cada vez mais forte. Ela é como uma sol, irradiando calor a quilômetros de distância. Sua mão toca a maçaneta, gira-a vagarosamente. A porta range nas dobradiças.
Mais que depressa, corro para os meus livros e cadernos, finjo que estou empenhado no dever de casa. Ela olha, dá um sorrisinho sem mostrar os dentes, como se dissesse " muito bem, continue na linha", e vai embora. Volto para a janela e continuo observando a cinzenta paisagem urbana, pensando, pensando...