sábado, 9 de julho de 2011

O móvel estranho

Sempre desconfiei que meus vizinhos escondessem um segredo comprometedor. Estavam sempre de cortinas cerradas, mal saíam durante o dia e quando saíam era algo tão repentino que minutos depois você ficava se perguntando se aquilo de fato acontecera ou se fora obra de sua imaginação. Talvez fossem foragidos da polícia, vivendo sob identidades falsas, ou terroristas que planejavam um ataque em larga prorporção - era difícil saber. Pelo sim ou pelo não, ali estava uma coisa que deveria ser investigada.
Passei dias trepado na goiabeira do meu quintal, lugar estratégico de onde eu podia ver toda a movimentação da casa vizinha. Porém nada mais suspeito do que eu já suspeitava acontecera. O dia deles era monótono, tanto que uma hora acabei entediado e desci da árvore. Mas foi justamente quando algo aconteceu. Voltei para o meu posto de observação e agucei todos os sentidos. Um som estranho vinha de uma das janelas da casa. Parecia ser de uma canção, mas não daquelas tocadas em rádio; era mais viva e mais bonita, como se possuísse alma prórpia. Tentei me aproximar um pouco mais, escalando os galhos mais altos, até que a árvore não aguentou o peso excedente e juntos fomos ao chão. Quando me recompus, estava no terreno vizinho. Entrei em pânico. A música havia sido bruscamente interrompida minutos depois de me encontrar naquela situação; alguém havia notado minha presença. Corri de um lado para o outro feito barata desnorteada, não encontrando moita ou montinho de terra onde pudesse me refugiar. Decidi me render quando abriram a porta dos fundos e me flagraram. Uma bela mulher  sorriu e perguntou meu nome. "Eugênio", menti descaradamente. Num instante ela ficou séria, como se houvesse desmascarado a mentira, mas pouco depois voltou a sorrir e me convidou para entrar. Havia preparado alguns docinhos.
Levei algum tempo até decidir o que faria: se permanecia onde estava, parado, feito uma estátua ridícula, ou se a seguia. Não fora exatamente daquela forma que João e Maria haviam sido enganados pela Bruxa? Mas aquele não era um conto de carochinhas -  era a vida real, palpável, lúcida, vivível - e na vida real  poucas coisas eram possíveis. Você poderia ser atropelado por um carro ou mesmo ser vítima de um atentado, mas nunca seria devorado por uma bruxa ou enfeitiçado por alguns docinhos encantados. Se ainda me restava alguma dúvida a respeito do caráter daquela moça, essa dúvida foi totalmente dissipada pelo irresirtível aroma de bolo fresquinho que vinha da cozinha.
Fui conduzido casa adentro, cômodo após cômodo, pela mão fria da moça que me prendia pelo braço. Vendo de perto os móveis (quase podendo tocá-los de tão próximos, não fosse o receio de quebrá-los) eles agora me pareciam menos suspeitos; não passavam de móveis comuns, muitos até bem parecidos com os de casa. Mas ao passar pela sala de visitas, um móvel estranho me deteve a atenção, fazendo-me estacar a poucos metros dele. A moça sorriu gentilmente e perguntou se ainda queria os biscoitos. Diante do meu silêncio ela se dirigiu ao móvel e sentou-se numa banqueta atrás dele. Em poucos minutos começou a arrancar de suas entranhas sons tão harmoniosos que por um instante imaginei estar no paraíso e  que a moça fosse uma fada, não mais a bruxa que eu temia. As mesmas notas que me atraíram até ali agora juntavam-se  formando uma melodia que emanava do móvel estranho e propagava-se por todo o ambiente, como uma fonte de prazer. Sentei-me no chão e fechei os olhos para absorver melhor toda aquela maré de êxtase. Era o que fazia quando queria tornar  minha alguma coisa nova. Imaginava que era o dono daquilo e desfilava na rua, pomposo, só para fazer inveja à molecada.
Mas de súbito a música cessou, como um sopro interrompido, e tive de abrir os olhos novamente. Mergulhada no silêncio, a casa voltou a assumir sua antiga forma de mistério. Senti as mãos delicadas e frias da moça tocarem meus pulsos. Ela havia sentado-se diante de mim, no assoalho. Seus olhos lustrosos fitavam os meus. Pude então perceber que havia chorado... e muito, tanto que a ponta de seu nariz estava vermelha. Após um longo silêncio de intensa contemplação, enfim ela me confessou com um ar pesaroso que partiria em breve, nunca mais voltaria.Se quisesse, eu poderia ficar com o piano. Ela o deixaria como um presente para mim.        
Em algum lugar da minha consciência  eu sabia o quanto de eternidade carregavam as palavras "nunca mais"; era muito pior que um mero adeus ou um "até logo". Porém estava tão absorto com o eco da canção ricocheteando nas paredes da minha memória que não pude me dar conta da gravidade de tudo aquilo.
Passei dias aéreo, reproduzindo monótonamente a velha canção em minha cabeça. Quando voltei à realidade, meus vizinhos haviam partido. Conforme  prometido, a moça deixara o móvel estranho. Solitário no meio da sala, mais parecia um objeto fantasmagórico. Nunca mais ouviria fluir música de suas entranhas, e nunca mais eram palavras que carregavam em si um tempo que não podia ser cronometrado. Levou anos até que eu esquecesse tudo e voltasse a ter uma vida normal.

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